sexta-feira, fevereiro 23, 2007
quarta-feira, fevereiro 21, 2007
a sopa
Há cerca de 15 dias concretizou-se a mudança de formato do Público. Porque não gosto de tirar conclusões precipitadas, e porque tento combater tanto quanto possível as infundadas resistências à mudança, decidi aguardar. Sobretudo para ver se o novo formato do jornal se entranhava, já que desde o primeiro dia o estranhei.
Mas o esforço foi em vão. Continuo a não lhe encontrar nem graça, nem beleza e muito menos eficácia. O Público transformou-se numa daquelas sopas que, tendo praticamente todos os ingredientes do costume, foi agora passada pela varinha mágica, tornando tudo indiferenciado e com um aspecto generalizado de vómito (mais colorido, é certo, mas com a contrapartida de agravar o aspecto de vómito). Perco tempo à procura de cada um dos legumes que antes encontrava com imensa facilidade e, por mais que tente, não lhe consigo redesenhar o mapa mental que era tão claro até aqui.
Aquele que eu considerava ser único e com uma identidade bem definida, pela qual tinha empatia, tornou-se um jornal vulgar (com a agravante das pequenas coisas imperdoáveis, como a saída de Calvin e Hobbes da última página). Se um bom exemplo fosse necessário, aí está o novo Público para demonstrar que a mudança não é um bem em si mesmo.
Mas o esforço foi em vão. Continuo a não lhe encontrar nem graça, nem beleza e muito menos eficácia. O Público transformou-se numa daquelas sopas que, tendo praticamente todos os ingredientes do costume, foi agora passada pela varinha mágica, tornando tudo indiferenciado e com um aspecto generalizado de vómito (mais colorido, é certo, mas com a contrapartida de agravar o aspecto de vómito). Perco tempo à procura de cada um dos legumes que antes encontrava com imensa facilidade e, por mais que tente, não lhe consigo redesenhar o mapa mental que era tão claro até aqui.
Aquele que eu considerava ser único e com uma identidade bem definida, pela qual tinha empatia, tornou-se um jornal vulgar (com a agravante das pequenas coisas imperdoáveis, como a saída de Calvin e Hobbes da última página). Se um bom exemplo fosse necessário, aí está o novo Público para demonstrar que a mudança não é um bem em si mesmo.
segunda-feira, fevereiro 19, 2007
falência técnica
Se for coerente e consequente, o Cónego Tarcísio Alves deverá a breve prazo anunciar a falência técnica dos estabelecimentos que a ICAR possui em Castelo de Vide, devido à quebra compulsiva de fregueses.
Com efeito, ao avisar os seus fiéis que não votando no referendo do passado domingo cometeriam pecado mortal gravíssimo (ficando impedidos de participar na Santa Eucaristia), e tendo garantido a excomunhão a todos quantos votassem “sim” pela despenalização da IVG, restam-lhe neste momento: 242 ovelhas (votantes no “não”) com a lã absolutamente branquinha; cerca de 1900 ovelhas abstencionistas, com o pêlo imundo; e 989 ovelhas (votantes no “sim”) prontinhas para esturricar nas santas brasas da lei. Ansiosas por conhecer a sua sorte, encontram-se ainda 25 ovelhas no limbo dos brancos e nulos, devido à não regulamentação atempada das práticas em que irresponsavelmente se meteram.
Assim, feitas as contas, das 3157 ovelhas recenseadas que constituíam o potencial rebanho paroquial a 10 de Fevereiro, 60% estão em pecado mortal gravíssimo, 31% incorreram em excomunhão imediata e apenas 8% se encontram em pleno estado de graça religiosa e eleitoral.
Para além de decretar a falência técnica da paróquia de Castelo de Vide, espera-se que o Cónego Tarcísio apresente um Plano de Reestruturação e Racionalização da Rede de Igrejas e Capelas (PRRRIC), que reparta as ovelhas sobrantes por estabelecimentos existentes noutros concelhos do distrito de Portalegre, sobretudo aqueles onde as baixas não foram tão relevantes, e que são a maioria dos casos (conforme figura). Em resposta à comunicação social, sobre se afinal não seria esta uma estratégia maquiavélica e secreta de Tarcísio Alves para acabar com a presença da ICAR no concelho, o Cónego escusou-se a responder, enchendo a boca com as tradicionais boleimas de Castelo de Vide.
Com efeito, ao avisar os seus fiéis que não votando no referendo do passado domingo cometeriam pecado mortal gravíssimo (ficando impedidos de participar na Santa Eucaristia), e tendo garantido a excomunhão a todos quantos votassem “sim” pela despenalização da IVG, restam-lhe neste momento: 242 ovelhas (votantes no “não”) com a lã absolutamente branquinha; cerca de 1900 ovelhas abstencionistas, com o pêlo imundo; e 989 ovelhas (votantes no “sim”) prontinhas para esturricar nas santas brasas da lei. Ansiosas por conhecer a sua sorte, encontram-se ainda 25 ovelhas no limbo dos brancos e nulos, devido à não regulamentação atempada das práticas em que irresponsavelmente se meteram.
Assim, feitas as contas, das 3157 ovelhas recenseadas que constituíam o potencial rebanho paroquial a 10 de Fevereiro, 60% estão em pecado mortal gravíssimo, 31% incorreram em excomunhão imediata e apenas 8% se encontram em pleno estado de graça religiosa e eleitoral.
Para além de decretar a falência técnica da paróquia de Castelo de Vide, espera-se que o Cónego Tarcísio apresente um Plano de Reestruturação e Racionalização da Rede de Igrejas e Capelas (PRRRIC), que reparta as ovelhas sobrantes por estabelecimentos existentes noutros concelhos do distrito de Portalegre, sobretudo aqueles onde as baixas não foram tão relevantes, e que são a maioria dos casos (conforme figura). Em resposta à comunicação social, sobre se afinal não seria esta uma estratégia maquiavélica e secreta de Tarcísio Alves para acabar com a presença da ICAR no concelho, o Cónego escusou-se a responder, enchendo a boca com as tradicionais boleimas de Castelo de Vide.
terça-feira, fevereiro 13, 2007
portugal social
1. Em qualquer representação cartográfica dos resultados do referendo é clara a transição em favor do “sim” à medida que caminhamos de Norte para Sul do país. Esta transição torna-se ainda mais evidente quando se analisa a intensidade das tendências de voto por concelho, o que permite destacar os casos em que os resultados ultrapassam os 80% a favor da despenalização da IVG, nos termos colocados a plebiscito, e por oposição as situações em que o voto “não” é superior a 25%.
2. A cartografia destas tendências revela dois casos curiosos pelo seu significado: o concelho da Marinha Grande, bastião de esquerda em Leiria e cuja industrialização é indissociável de uma forte mobilização sindical; e o concelho de Ourém, a que pertence a capital lusa do catolicismo, Fátima, onde a pastorícia fez irromper o sobrenatural. Encontrando-se praticamente à mesma latitude, e espaçosamente rodeados por situações com resultados menos extremados, Marinha Grande é o concelho localizado mais a Norte com votação “sim” superior a 80%, e Ourém o concelho mais a Sul com votação “não” superior a 75%.
3. Sobre a importância da Ideologia e da Igreja neste referendo, os exemplos acabados de referir são simbolicamente eloquentes, contrariando todas as teses que defendem que a questão do aborto não é uma questão nem ideológica nem religiosa. Aliás, o retrato do país pós-referendo encarrega-se de o demonstrar com extrema nitidez, associando os concelhos com maior urbanização ao “sim” (ainda que menos extremado na sua expressão), e dividindo o mundo rural entre o “sim” a Sul e o “não” a Norte, num reflexo respectivo do peso da Ideologia e da Igreja.
4. Mas o retrato social que resulta de domingo passado vai muito para além da expressão das posições sobre a despenalização da IVG. Aliás, o que sempre esteve em causa neste referendo foi muito mais profundo do que a questão do aborto e da sua despenalização. A partir do momento em que o argumento da “inviolabilidade da vida humana” se tornou irremediavelmente ferido de contradição (face à aceitação, por parte da maioria dos opositores à despenalização, das excepções consagradas na Lei de 1984, e da sua concordância relativamente à não aplicação da pena de prisão), o que esteve verdadeiramente em causa passou a ser outra questão: a ilegitimidade do Estado para se arrogar do direito de invadir e devassar as vidas e consciências individuais, a mando de uma parte da sociedade que gostaria de impor, pela força do Código Penal, os seus valores morais, éticos e religiosos à sociedade no seu todo.
2. A cartografia destas tendências revela dois casos curiosos pelo seu significado: o concelho da Marinha Grande, bastião de esquerda em Leiria e cuja industrialização é indissociável de uma forte mobilização sindical; e o concelho de Ourém, a que pertence a capital lusa do catolicismo, Fátima, onde a pastorícia fez irromper o sobrenatural. Encontrando-se praticamente à mesma latitude, e espaçosamente rodeados por situações com resultados menos extremados, Marinha Grande é o concelho localizado mais a Norte com votação “sim” superior a 80%, e Ourém o concelho mais a Sul com votação “não” superior a 75%.
3. Sobre a importância da Ideologia e da Igreja neste referendo, os exemplos acabados de referir são simbolicamente eloquentes, contrariando todas as teses que defendem que a questão do aborto não é uma questão nem ideológica nem religiosa. Aliás, o retrato do país pós-referendo encarrega-se de o demonstrar com extrema nitidez, associando os concelhos com maior urbanização ao “sim” (ainda que menos extremado na sua expressão), e dividindo o mundo rural entre o “sim” a Sul e o “não” a Norte, num reflexo respectivo do peso da Ideologia e da Igreja.
4. Mas o retrato social que resulta de domingo passado vai muito para além da expressão das posições sobre a despenalização da IVG. Aliás, o que sempre esteve em causa neste referendo foi muito mais profundo do que a questão do aborto e da sua despenalização. A partir do momento em que o argumento da “inviolabilidade da vida humana” se tornou irremediavelmente ferido de contradição (face à aceitação, por parte da maioria dos opositores à despenalização, das excepções consagradas na Lei de 1984, e da sua concordância relativamente à não aplicação da pena de prisão), o que esteve verdadeiramente em causa passou a ser outra questão: a ilegitimidade do Estado para se arrogar do direito de invadir e devassar as vidas e consciências individuais, a mando de uma parte da sociedade que gostaria de impor, pela força do Código Penal, os seus valores morais, éticos e religiosos à sociedade no seu todo.
5. É por esta razão que a vitória do “sim” no domingo passado vai para além da despenalização do aborto nos termos colocados a referendo. É por esta razão que desde o último domingo Portugal conseguiu virar uma página medieval e com semblante teocrático da sua história, dando um passo civilizacional que só peca por tardio. Venceu a dignidade do respeito pela consciência individual, venceu o pluralismo, venceu uma democracia mais verdadeira, aberta e tolerante, que confere a cada pessoa o direito às suas convicções, valores e liberdade. E a luta continua.
sábado, fevereiro 10, 2007
porque hoje é sábado
(Foto de Spencer Platt, que venceu o World Press Photo 2006, na capa do Público de hoje. A imagem escolhida mostra um grupo de libaneses a passear-se em Beirute, num descapotável vermelho no meia da devastação, depois dos bombardeamentos da aviação israelita.)
Neste momento há um casamento ■ Porque hoje é sábado ■ Há um divórcio e um violamento ■ Porque hoje é sábado ■ Há um homem rico que se mata ■ Porque hoje é sábado ■ Há um incesto e uma regata ■ Porque hoje é sábado ■ Há um espectáculo de gala ■ Porque hoje é sábado ■ Há uma mulher que apanha e cala ■ Porque hoje é sábado ■ Há um renovar-se de esperanças ■ Porque hoje é sábado ■ Há uma profunda discordância ■ Porque hoje é sábado ■ (…) ■ Há a perspectiva do domingo ■ Porque hoje é sábado
(Vinicius de Moraes, Poética (I), 1950)
sexta-feira, fevereiro 09, 2007
o referendo
(Artigo de José Gil, publicado na Visão de 8 de Fevereiro de 2007)
Nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
É, para mim, evidente que os argumentos utilizados pelos partidários do “sim” são muito mais claros e coerentes do que os dos defensores do “não”. Tudo se condensa no que foi repetindo, ao longo da campanha, Vital Moreira: o “não” significa a defesa e manutenção da lei actual, quer dizer do aborto clandestino com os seus perigos para a saúde e os seus riscos de morte, a criminalização da mulher, a sua humilhação, a intromissão do Estado na consciência íntima da pessoa, a impossibilidade de criar condições de assistência médica e psicológica à mulher que aborta, etc.
A defesa do status quo é a defesa de uma cultura de morte, com laivos de autoritarismo político; deseja-se a continuação de uma lei que promove mentalidades submissas, a clandestinidade, o juízo moral e social mais retrógrado (a “mulher devassa” e “criminosa”), a culpabilidade e a vergonha. Mais: uma lei que, longe de induzir melhores condições para a liberdade de escolha, conduz à própria interiorização forçada e perversa. Uma lei fundamentalista, característica de um Estado teocrático. Vivemos, neste campo, em regime de crueldade arcaica.
Os argumentos do “não” concentram-se num ponto: a questão referendada não se referiria à “despenalização” mas à “liberalização” do aborto. De onde, é-se ou não pelo direito à vida? O feto não é vida em crescimento, um ser humano em potência? O aborto é, pois, um crime, e o “sim” equivaleria a uma “matança dos inocentes”. Passa-se, com um salto, do nível penal para o nível moral-metafísico a partir do qual se julga o valor jurídico da acção. É o que se chama um sofisma.
Curiosamente, as contradições implícitas no sofisma não incomodam os apoiantes do “não” (por exemplo, aceitam a lei actual que admite o aborto em casos de violação: não se mata também uma vida humana? Então porque é que a aceitam?). A argumentação pelos direitos da vida transforma a lei jurídica em lei moral e, esta, em lei divina. Tornam o “por ou contra” a despenalização do aborto em “por ou contra” a vida humana. Ora nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
O “sim” é claro e tolerante, o “não” impositivo e intolerante. Contra um argumento central dos partidários do “sim” (que a opção de abortar depende da consciência da mulher), o “não” afirma que a mulher ou a jovem é influenciada por terceiros. A ideia de que a mulher pode escolher livremente, é uma ilusão. Pelo contrário, há, nos defensores do “não”, a convicção subliminar de que toda a mulher quer, ontologicamente, por uma espécie de essência da feminilidade, inscrita nos genes, ter filhos sempre. Ou seja, que a recusa de os ter – como no acto de abortar – é contranatura, e só pode provir de uma pressão exterior. Ideia que funda a recusa em despenalizar o aborto. A harmonia entre a Natureza e o Espírito – garantida pelo Estado – condena, em toda a circunstância, o aborto.
Aqueles mesmos que querem ver no embrião uma “pessoa humana” reduzem-na, paradoxalmente, ao ser biológico, quando sabemos, hoje, graças, em parte a cientistas como Françoise Dolto – psicanalista, cristã, que admitia o aborto – que a “humanização” do recém-nascido e da criança é um processo que passa essencialmente pelo desejo e pela linguagem. Quando uma mulher manifesta o desejo de abortar, o médico deve ouvi-la, diz Dolto. Porque um ser que nasce só se torna humano quando “é o fruto de três desejos: o desejo consciente do acto sexual completo do pai, o desejo inconsciente da mãe, e, também, o desejo inconsciente de sobreviver desse embrião no qual uma vida humana tem origem”.
Esse desejo do embrião começa por ser biológico e só se torna humano quando é simbolizado pela linguagem, desejado expressamente pelo pai e pela mãe. Mas, em muitos contextos, cada vez mais frequentes, pela anestesia afectiva crescente que perturba as relações humanas e a sexualidade – tal não se produz: e a mãe, por isso, deseja abortar. Dolto mostra o que pode acontecer a uma criança obrigada a nascer quando não desejada, não “falada” na linguagem do desejo dela ser. “Criança órfã de pais simbólicos”, “frustrada do direito de todo o ser humano à alegria”, com um sem-número de patologias que vão até à psicose.
É também para que não haja crianças “impostas” e mutiladas no seu processo de humanização que o “sim” deve ganhar – para que acabe a vergonhosa criminalização da mulher que, tantas vezes culpabilizada, em sofrimento extremo, escolhe abortar.
Nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
É, para mim, evidente que os argumentos utilizados pelos partidários do “sim” são muito mais claros e coerentes do que os dos defensores do “não”. Tudo se condensa no que foi repetindo, ao longo da campanha, Vital Moreira: o “não” significa a defesa e manutenção da lei actual, quer dizer do aborto clandestino com os seus perigos para a saúde e os seus riscos de morte, a criminalização da mulher, a sua humilhação, a intromissão do Estado na consciência íntima da pessoa, a impossibilidade de criar condições de assistência médica e psicológica à mulher que aborta, etc.
A defesa do status quo é a defesa de uma cultura de morte, com laivos de autoritarismo político; deseja-se a continuação de uma lei que promove mentalidades submissas, a clandestinidade, o juízo moral e social mais retrógrado (a “mulher devassa” e “criminosa”), a culpabilidade e a vergonha. Mais: uma lei que, longe de induzir melhores condições para a liberdade de escolha, conduz à própria interiorização forçada e perversa. Uma lei fundamentalista, característica de um Estado teocrático. Vivemos, neste campo, em regime de crueldade arcaica.
Os argumentos do “não” concentram-se num ponto: a questão referendada não se referiria à “despenalização” mas à “liberalização” do aborto. De onde, é-se ou não pelo direito à vida? O feto não é vida em crescimento, um ser humano em potência? O aborto é, pois, um crime, e o “sim” equivaleria a uma “matança dos inocentes”. Passa-se, com um salto, do nível penal para o nível moral-metafísico a partir do qual se julga o valor jurídico da acção. É o que se chama um sofisma.
Curiosamente, as contradições implícitas no sofisma não incomodam os apoiantes do “não” (por exemplo, aceitam a lei actual que admite o aborto em casos de violação: não se mata também uma vida humana? Então porque é que a aceitam?). A argumentação pelos direitos da vida transforma a lei jurídica em lei moral e, esta, em lei divina. Tornam o “por ou contra” a despenalização do aborto em “por ou contra” a vida humana. Ora nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
O “sim” é claro e tolerante, o “não” impositivo e intolerante. Contra um argumento central dos partidários do “sim” (que a opção de abortar depende da consciência da mulher), o “não” afirma que a mulher ou a jovem é influenciada por terceiros. A ideia de que a mulher pode escolher livremente, é uma ilusão. Pelo contrário, há, nos defensores do “não”, a convicção subliminar de que toda a mulher quer, ontologicamente, por uma espécie de essência da feminilidade, inscrita nos genes, ter filhos sempre. Ou seja, que a recusa de os ter – como no acto de abortar – é contranatura, e só pode provir de uma pressão exterior. Ideia que funda a recusa em despenalizar o aborto. A harmonia entre a Natureza e o Espírito – garantida pelo Estado – condena, em toda a circunstância, o aborto.
Aqueles mesmos que querem ver no embrião uma “pessoa humana” reduzem-na, paradoxalmente, ao ser biológico, quando sabemos, hoje, graças, em parte a cientistas como Françoise Dolto – psicanalista, cristã, que admitia o aborto – que a “humanização” do recém-nascido e da criança é um processo que passa essencialmente pelo desejo e pela linguagem. Quando uma mulher manifesta o desejo de abortar, o médico deve ouvi-la, diz Dolto. Porque um ser que nasce só se torna humano quando “é o fruto de três desejos: o desejo consciente do acto sexual completo do pai, o desejo inconsciente da mãe, e, também, o desejo inconsciente de sobreviver desse embrião no qual uma vida humana tem origem”.
Esse desejo do embrião começa por ser biológico e só se torna humano quando é simbolizado pela linguagem, desejado expressamente pelo pai e pela mãe. Mas, em muitos contextos, cada vez mais frequentes, pela anestesia afectiva crescente que perturba as relações humanas e a sexualidade – tal não se produz: e a mãe, por isso, deseja abortar. Dolto mostra o que pode acontecer a uma criança obrigada a nascer quando não desejada, não “falada” na linguagem do desejo dela ser. “Criança órfã de pais simbólicos”, “frustrada do direito de todo o ser humano à alegria”, com um sem-número de patologias que vão até à psicose.
É também para que não haja crianças “impostas” e mutiladas no seu processo de humanização que o “sim” deve ganhar – para que acabe a vergonhosa criminalização da mulher que, tantas vezes culpabilizada, em sofrimento extremo, escolhe abortar.
nem um dedo para os aliviar
(Do contributo de José Mattoso, para o Sim no Referendo)
"Os padres e bispos que o fazem correm o risco de se parecer demasiado com aqueles de quem Jesus dizia: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os aliviar» (Mt.23.4). Em vez de se obcecarem na condenação seria melhor preocuparem-se com a misericórdia."
"Os padres e bispos que o fazem correm o risco de se parecer demasiado com aqueles de quem Jesus dizia: «Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os aliviar» (Mt.23.4). Em vez de se obcecarem na condenação seria melhor preocuparem-se com a misericórdia."
quarta-feira, fevereiro 07, 2007
ou muito me engano
Ou, caso vença o “não” no referendo pela despenalização do aborto, ainda vamos assistir a alguns dos seus militantes a rasgar as vestes, com a mesma histeria hipócrita, porque o sistema político, os seus agentes e o mais elementar respeito pela regras do sistema democrático e do Estado de Direito, afinal não lhes permitem legislar a favor da despenalização do aborto, como tanto desejam.
terça-feira, fevereiro 06, 2007
segunda-feira, fevereiro 05, 2007
a vida como ela é (3)
“(…) Quase sou tentada a dizer que uma mulher percebe quando não se sente apta a levar avante uma gravidez. Vivia sozinha com a minha filha mais velha, não tinha uma relação estável, não iria criar laços com o pai da criança só porque ela existia. Naquele momento da minha vida assumir aquela gravidez não fazia qualquer sentido. (…) Recorri a uma parteira muito cuidadosa (…), mas na clandestinidade, claro. E esse fardo é tremendamente pesado. (…) Sabemos que a qualquer momento nos pode aparecer a polícia à frente. Se me perguntarem se tenho memórias negras desse dia muito objectivamente terei que responder que não. Tinha uma decisão assumidíssima. (…) As memórias negras que existem têm, tão somente, a ver com a revolta que sentia por não me reconhecerem o direito de fazer aquilo que tinha acabado de fazer sem aquele "ferro" de crime, por ter passado a ser, de acordo com a lei do meu país, uma criminosa.”
(Relato completo em Eu Voto Sim!)
(Relato completo em Eu Voto Sim!)
domingo, fevereiro 04, 2007
como um barco na noite
"O aborto é ilegal na Irlanda, punível com prisão perpétua. Apesar disso, 8.000 mulheres irlandesas viajam todos os anos até à Inglaterra para fazerem interrupções voluntárias da gravidez. Fazem esta viagem em segredo e regressam em silêncio. “Como um Barco na Noite” é um documentário de 30 minutos que acompanha a história de uma jovem pintora, de uma mãe trabalhadora com cinco filhos e de uma rapariga do campo. Ao longo do filme ouvimos testemunhos de assistentes sociais, médicos e conselheiros de planeamento familiar sobre a história legal e de mentalidades que obriga as mulheres a essa viagem."
(Like a Ship in the Night, de Melissa Thompson)
A distância que separa a Irlanda da Inglaterra e Portugal de Badajoz corresponde provavelmente à distância que separa os quadros legais irlandês e português em matéria de aborto. O caso irlandês permite ver até onde pode ir a imposição autoritária e repressiva de concepções morais e religiosas sobre os outros. Mas, na sua essência, o espírito de intolerância, desumanidade e invasão da intimidade e da consciência é basicamente o mesmo.
sábado, fevereiro 03, 2007
a intimidade dos outros
(Do artigo de Helena Matos - Público, 3 de Fevereiro de 2007)
"(...) Aquilo que divide o "sim" do "não" são concepções diferentes do nosso poder sobre a intimidade dos outros e em que medida o Estado lhes deve impor as opções que nós temos como certas. Até onde achamos que o Estado pode controlar não só ou nem tanto as nossas vidas mas sobretudo as dos outros? Esta é a questão que está omnipresente quando votarmos a 11 de Fevereiro.
O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez.
Pessoalmente não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter esse direito."
"(...) Aquilo que divide o "sim" do "não" são concepções diferentes do nosso poder sobre a intimidade dos outros e em que medida o Estado lhes deve impor as opções que nós temos como certas. Até onde achamos que o Estado pode controlar não só ou nem tanto as nossas vidas mas sobretudo as dos outros? Esta é a questão que está omnipresente quando votarmos a 11 de Fevereiro.
O que está em causa neste referendo não é o que nós fazemos, faríamos ou fizemos quando e se confrontados com o dilema de interromper ou não uma gravidez. O que está em causa é o nosso direito a impor uma gravidez.
Pessoalmente não creio que qualquer um de nós tenha ou possa ter esse direito."
sexta-feira, fevereiro 02, 2007
a vida como ela é (2)
“(…) Apenas sabia que não era o momento. Estava a acabar de sair de uma relação em que era agredida intensamente fisicamente e psicologicamente, a acabar o curso. Sem qualquer condição psicológica para me estruturar e sem motivação para viver quanto mais ter um filho totalmente inesperado e que iria ligar-me para sempre a quem me maltratou duramente. (…) Chamem-me fraca, chamem o que quiserem mas que condições tinha eu para criar assim um filho de forma saudável e feliz? (…) Por muito que custe foi a decisão mais sensata dessa relação. (…) Eu tive sorte, tudo correu bem mas o local, a forma, a frieza marca de uma forma... Faz com que o acto seja mais marcante fisicamente do que psicologicamente. (…) Hoje claro que custa pensar nisso. Mas quando penso na forma que estaria a minha vida... não me arrependo.”
(Relato completo em Eu Voto Sim!)
(Relato completo em Eu Voto Sim!)
quinta-feira, fevereiro 01, 2007
a mulher ali em pé
Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e pondo-a no meio, disseram-lhe: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. Ora, Moisés nos ordena na lei que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?”. Isto diziam eles, tentando-o, para terem de que o acusar. Jesus, porém, inclinando-se, começou a escrever no chão com o dedo. Mas, como insistissem em perguntar-lhe, ergueu-se e disse-lhes: “Aquele dentre vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra.” E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra.
Quando ouviram isto foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, até os últimos; ficou só Jesus, e a mulher ali em pé. Então, erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. E disse-lhe Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar.”
Quando ouviram isto foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, até os últimos; ficou só Jesus, e a mulher ali em pé. Então, erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém senão a mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”. E disse-lhe Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar.”
(Evangelho segundo São João, Capítulo 8, Versículos 1-11)