o referendo
(Artigo de José Gil, publicado na Visão de 8 de Fevereiro de 2007)
Nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
É, para mim, evidente que os argumentos utilizados pelos partidários do “sim” são muito mais claros e coerentes do que os dos defensores do “não”. Tudo se condensa no que foi repetindo, ao longo da campanha, Vital Moreira: o “não” significa a defesa e manutenção da lei actual, quer dizer do aborto clandestino com os seus perigos para a saúde e os seus riscos de morte, a criminalização da mulher, a sua humilhação, a intromissão do Estado na consciência íntima da pessoa, a impossibilidade de criar condições de assistência médica e psicológica à mulher que aborta, etc.
A defesa do status quo é a defesa de uma cultura de morte, com laivos de autoritarismo político; deseja-se a continuação de uma lei que promove mentalidades submissas, a clandestinidade, o juízo moral e social mais retrógrado (a “mulher devassa” e “criminosa”), a culpabilidade e a vergonha. Mais: uma lei que, longe de induzir melhores condições para a liberdade de escolha, conduz à própria interiorização forçada e perversa. Uma lei fundamentalista, característica de um Estado teocrático. Vivemos, neste campo, em regime de crueldade arcaica.
Os argumentos do “não” concentram-se num ponto: a questão referendada não se referiria à “despenalização” mas à “liberalização” do aborto. De onde, é-se ou não pelo direito à vida? O feto não é vida em crescimento, um ser humano em potência? O aborto é, pois, um crime, e o “sim” equivaleria a uma “matança dos inocentes”. Passa-se, com um salto, do nível penal para o nível moral-metafísico a partir do qual se julga o valor jurídico da acção. É o que se chama um sofisma.
Curiosamente, as contradições implícitas no sofisma não incomodam os apoiantes do “não” (por exemplo, aceitam a lei actual que admite o aborto em casos de violação: não se mata também uma vida humana? Então porque é que a aceitam?). A argumentação pelos direitos da vida transforma a lei jurídica em lei moral e, esta, em lei divina. Tornam o “por ou contra” a despenalização do aborto em “por ou contra” a vida humana. Ora nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
O “sim” é claro e tolerante, o “não” impositivo e intolerante. Contra um argumento central dos partidários do “sim” (que a opção de abortar depende da consciência da mulher), o “não” afirma que a mulher ou a jovem é influenciada por terceiros. A ideia de que a mulher pode escolher livremente, é uma ilusão. Pelo contrário, há, nos defensores do “não”, a convicção subliminar de que toda a mulher quer, ontologicamente, por uma espécie de essência da feminilidade, inscrita nos genes, ter filhos sempre. Ou seja, que a recusa de os ter – como no acto de abortar – é contranatura, e só pode provir de uma pressão exterior. Ideia que funda a recusa em despenalizar o aborto. A harmonia entre a Natureza e o Espírito – garantida pelo Estado – condena, em toda a circunstância, o aborto.
Aqueles mesmos que querem ver no embrião uma “pessoa humana” reduzem-na, paradoxalmente, ao ser biológico, quando sabemos, hoje, graças, em parte a cientistas como Françoise Dolto – psicanalista, cristã, que admitia o aborto – que a “humanização” do recém-nascido e da criança é um processo que passa essencialmente pelo desejo e pela linguagem. Quando uma mulher manifesta o desejo de abortar, o médico deve ouvi-la, diz Dolto. Porque um ser que nasce só se torna humano quando “é o fruto de três desejos: o desejo consciente do acto sexual completo do pai, o desejo inconsciente da mãe, e, também, o desejo inconsciente de sobreviver desse embrião no qual uma vida humana tem origem”.
Esse desejo do embrião começa por ser biológico e só se torna humano quando é simbolizado pela linguagem, desejado expressamente pelo pai e pela mãe. Mas, em muitos contextos, cada vez mais frequentes, pela anestesia afectiva crescente que perturba as relações humanas e a sexualidade – tal não se produz: e a mãe, por isso, deseja abortar. Dolto mostra o que pode acontecer a uma criança obrigada a nascer quando não desejada, não “falada” na linguagem do desejo dela ser. “Criança órfã de pais simbólicos”, “frustrada do direito de todo o ser humano à alegria”, com um sem-número de patologias que vão até à psicose.
É também para que não haja crianças “impostas” e mutiladas no seu processo de humanização que o “sim” deve ganhar – para que acabe a vergonhosa criminalização da mulher que, tantas vezes culpabilizada, em sofrimento extremo, escolhe abortar.
Nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
É, para mim, evidente que os argumentos utilizados pelos partidários do “sim” são muito mais claros e coerentes do que os dos defensores do “não”. Tudo se condensa no que foi repetindo, ao longo da campanha, Vital Moreira: o “não” significa a defesa e manutenção da lei actual, quer dizer do aborto clandestino com os seus perigos para a saúde e os seus riscos de morte, a criminalização da mulher, a sua humilhação, a intromissão do Estado na consciência íntima da pessoa, a impossibilidade de criar condições de assistência médica e psicológica à mulher que aborta, etc.
A defesa do status quo é a defesa de uma cultura de morte, com laivos de autoritarismo político; deseja-se a continuação de uma lei que promove mentalidades submissas, a clandestinidade, o juízo moral e social mais retrógrado (a “mulher devassa” e “criminosa”), a culpabilidade e a vergonha. Mais: uma lei que, longe de induzir melhores condições para a liberdade de escolha, conduz à própria interiorização forçada e perversa. Uma lei fundamentalista, característica de um Estado teocrático. Vivemos, neste campo, em regime de crueldade arcaica.
Os argumentos do “não” concentram-se num ponto: a questão referendada não se referiria à “despenalização” mas à “liberalização” do aborto. De onde, é-se ou não pelo direito à vida? O feto não é vida em crescimento, um ser humano em potência? O aborto é, pois, um crime, e o “sim” equivaleria a uma “matança dos inocentes”. Passa-se, com um salto, do nível penal para o nível moral-metafísico a partir do qual se julga o valor jurídico da acção. É o que se chama um sofisma.
Curiosamente, as contradições implícitas no sofisma não incomodam os apoiantes do “não” (por exemplo, aceitam a lei actual que admite o aborto em casos de violação: não se mata também uma vida humana? Então porque é que a aceitam?). A argumentação pelos direitos da vida transforma a lei jurídica em lei moral e, esta, em lei divina. Tornam o “por ou contra” a despenalização do aborto em “por ou contra” a vida humana. Ora nem o Código Penal é a Lei de Deus, nem a moral que o inspira pode ser absoluta. Tem de dar margem ao relativo, aos conflitos da realidade, à extrema complexidade dos casos singulares. É isto o espírito das leis para uma justiça humana.
O “sim” é claro e tolerante, o “não” impositivo e intolerante. Contra um argumento central dos partidários do “sim” (que a opção de abortar depende da consciência da mulher), o “não” afirma que a mulher ou a jovem é influenciada por terceiros. A ideia de que a mulher pode escolher livremente, é uma ilusão. Pelo contrário, há, nos defensores do “não”, a convicção subliminar de que toda a mulher quer, ontologicamente, por uma espécie de essência da feminilidade, inscrita nos genes, ter filhos sempre. Ou seja, que a recusa de os ter – como no acto de abortar – é contranatura, e só pode provir de uma pressão exterior. Ideia que funda a recusa em despenalizar o aborto. A harmonia entre a Natureza e o Espírito – garantida pelo Estado – condena, em toda a circunstância, o aborto.
Aqueles mesmos que querem ver no embrião uma “pessoa humana” reduzem-na, paradoxalmente, ao ser biológico, quando sabemos, hoje, graças, em parte a cientistas como Françoise Dolto – psicanalista, cristã, que admitia o aborto – que a “humanização” do recém-nascido e da criança é um processo que passa essencialmente pelo desejo e pela linguagem. Quando uma mulher manifesta o desejo de abortar, o médico deve ouvi-la, diz Dolto. Porque um ser que nasce só se torna humano quando “é o fruto de três desejos: o desejo consciente do acto sexual completo do pai, o desejo inconsciente da mãe, e, também, o desejo inconsciente de sobreviver desse embrião no qual uma vida humana tem origem”.
Esse desejo do embrião começa por ser biológico e só se torna humano quando é simbolizado pela linguagem, desejado expressamente pelo pai e pela mãe. Mas, em muitos contextos, cada vez mais frequentes, pela anestesia afectiva crescente que perturba as relações humanas e a sexualidade – tal não se produz: e a mãe, por isso, deseja abortar. Dolto mostra o que pode acontecer a uma criança obrigada a nascer quando não desejada, não “falada” na linguagem do desejo dela ser. “Criança órfã de pais simbólicos”, “frustrada do direito de todo o ser humano à alegria”, com um sem-número de patologias que vão até à psicose.
É também para que não haja crianças “impostas” e mutiladas no seu processo de humanização que o “sim” deve ganhar – para que acabe a vergonhosa criminalização da mulher que, tantas vezes culpabilizada, em sofrimento extremo, escolhe abortar.
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