antónio gama: um geógrafo peculiar
«Não sei se António Gama alguma vez plantou uma árvore. Sei que não escreveu “o” livro (a tese de doutoramento) e que não teve filhos. Mas isso não o impediu de ter influenciado sucessivas gerações de alunos e colegas, nas aulas ou em longas tertúlias, e de ter maravilhado inúmeras crianças, com os bonecos feitos de miolo de pão que surgiam das suas mãos, quase que por milagre, durante os almoços e jantares de grupo.
António Gama faz parte de uma geração de charneira. Filhos do maio de 68, bafejados pela Primavera Marcelista e protagonistas do período pós-25 de abril, muitos dessa geração contribuíram, de modo voluntarioso e empenhado, para abrir a ciência, então vista como necessariamente neutra, à política, bem como a academia, ainda por muitos encarada como uma torre de marfim, à sociedade. A Geografia, uma ciência humana de base naturalista, e Coimbra, uma cidade universitária rigidamente segmentada entre estudantes e futricas, tornavam essa tarefa particularmente imperiosa.
É nesse contexto social e histórico que nasce na Geografia a primeira geração de pensamento múltiplo: formada de acordo com as perspetivas tradicionais já em declínio noutros países mas ainda dominantes em Portugal, influenciada pelas correntes neopositivistas de origem anglo-saxónica então emergentes em todo o mundo ocidental e crítica, a partir de referenciais teóricos e ideológicos distintos, tanto das primeiras como das segundas. É uma geração eclética e contraditória, que compensa a fragilidade de muitas das suas posições com o entusiasmo com que as defende e as procura colocar em prática na Universidade, nos departamentos de Geografia e nas aulas. E é, também, a geração que fecha o ciclo das escolas científicas regionais ou nacionais, com precursores, fundadores e patronos bem identificados, para se envolver na construção de conhecimento científico numa ótica transnacional, para alguns talvez mesmo universal.
António Gama é um dos últimos representantes da Escola de Geografia de Coimbra e um dos primeiros a romper explicitamente com ela. Francófono e francófilo, é sobretudo a autores de língua francesa, ou de diferentes nacionalidades mas com períodos de exílio em França (como Milton Santos), que recorre no seu esforço de estender a geografia às ciências sociais, trazendo as teorias sociais para a geografia e levando as questões do espaço para as ciências sociais, e de entender a evolução da disciplina à luz da história e da filosofia do pensamento científico. Ao contrário de outros geógrafos da sua geração, mais focados no mundo anglo-saxónico e em autores do domínio da geografia, António Gama enceta um percurso relativamente singular, beneficiando, sem dúvida, dos contactos e debates com amigos e colegas do Centro de Estudos Sociais.
Mas a preocupação pela teoria e pela filosofia, sempre presente nas aulas e nas conversas infindáveis que se prolongavam noite fora numa tasca, na casa de um amigo ou simplesmente de pé no passeio de uma qualquer rua, dava lugar a análises pormenorizadas e descritivas, recheadas de factos, datas, nomes e outras referências empíricas quando percorríamos uma cidade, atravessávamos um vale, visitávamos lugares mais ou menos recônditos, ou subíamos a um morro para observar a paisagem. Com os olhos brilhantes de entusiasmo, as suas explicações mostravam que a velha geografia dos Mestres estava mais viva do que julgávamos e que era bem mais interessante do que os debates teóricos e filosóficos que tivéramos meia hora antes deixavam antever.
António Gama amava os livros e a leitura, a reflexão e a controvérsia. Tinha relações de amor-ódio com figuras que considerava como sendo de referência – desde o jornalista Francisco Sousa Tavares, então cronista do vespertino A Capital, ao geógrafo Paul Claval, tantas vezes por ele citado nas aulas – exatamente porque os admirava e, por isso, o incomodava que não correspondessem às suas expectativas, que não partilhassem as suas perspetivas, que não lhe indicassem caminhos que ele gostaria de ter descoberto.
Generoso e convivial, António Gama gostava mais de tratar dos outros do que de si próprio. Na verdade, não era um tribuno eloquente nem um escritor profícuo. Cultivava, com orgulho e eficiência, uma oralidade de proximidade: apoiar os alunos e ex-alunos, divulgar junto dos colegas o último artigo que tinha lido ou o livro acabado de comprar, comentar com os amigos acontecimentos recentes, enquadrando-os e problematizando-os. A sua influência era capilar, por vezes quase subliminar: sim, foi o Gama que indicou, que leu, que disse, que explicou. Uma partilha serena e horizontal, sem tiques de autoritarismo professoral ou de superioridade de quem leu mais, de quem sabe mais. A sua relação com os outros baseava-se, em grande medida, nesse tipo de partilha permanente. Nunca me pareceu aspirar a ser Mestre, o novo Mestre, da geografia da Universidade de Coimbra. Gostava, isso sim, de ser reconhecido como uma fonte credível onde quem quisesse poderia beber com proveito. A iluminá-lo, a imensidão de livros amontoados que em sua casa o cercavam literalmente, mesmo nas divisões mais improváveis.
Distraído e desorganizado, apaixonado e crédulo, António Gama deixou-se enredar pela vida – ou ele próprio a enredou – em momentos decisivos do seu percurso pessoal e profissional. Podia ter sido o líder natural da geração de geógrafos portugueses do pós-25 de abril. Não foi, talvez porque esse objetivo não fazia parte das suas ambições. Afinal, o seu registo sempre foi o da proximidade e da interação pessoal. António Gama também podia ter sido o embrião de uma nova escola de geografia de Coimbra, eclética e cosmopolita mas agarrada ao terreno, calcorreável, tal como os velhos Mestres da Geografia a ensinavam e praticavam. Terá chegado cedo demais?
Munidos das mais sofisticadas técnicas bibliométricas, os estudiosos da ciência da segunda metade do século XXI terão dificuldade em encontrar António Gama num vasto firmamento repleto de estrelas científicas. Mas António Gama não é uma estrela, é um cometa. E os cometas, quando passam, iluminam-nos de tal forma que colocam em segundo plano qualquer estrela, mesmo a mais brilhante.
Em 31 de dezembro de 2014, um dia depois de ter feito 66 anos, António Gama faleceu em Coimbra, a sua cidade, uma cidade que conhecia e amava como poucos. Partiu um cometa invulgar, peculiar, com destino desconhecido mas, estou certo, com um período de retorno curto. Esse retorno é, afinal, uma tarefa dos que, da geografia ou de outras áreas do saber, gostam de valorizar, na academia ou fora dela, pessoas e ideias que deixam rasto, que marcam uma época e lugares específicos, e que, por isso, merecem ser recordadas, debatidas e celebradas.»
João Ferrão
ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
(Artigo de homenagem a António Gama Mendes, a publicar em breve na Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, vol. L, nº 99)
António Gama faz parte de uma geração de charneira. Filhos do maio de 68, bafejados pela Primavera Marcelista e protagonistas do período pós-25 de abril, muitos dessa geração contribuíram, de modo voluntarioso e empenhado, para abrir a ciência, então vista como necessariamente neutra, à política, bem como a academia, ainda por muitos encarada como uma torre de marfim, à sociedade. A Geografia, uma ciência humana de base naturalista, e Coimbra, uma cidade universitária rigidamente segmentada entre estudantes e futricas, tornavam essa tarefa particularmente imperiosa.
É nesse contexto social e histórico que nasce na Geografia a primeira geração de pensamento múltiplo: formada de acordo com as perspetivas tradicionais já em declínio noutros países mas ainda dominantes em Portugal, influenciada pelas correntes neopositivistas de origem anglo-saxónica então emergentes em todo o mundo ocidental e crítica, a partir de referenciais teóricos e ideológicos distintos, tanto das primeiras como das segundas. É uma geração eclética e contraditória, que compensa a fragilidade de muitas das suas posições com o entusiasmo com que as defende e as procura colocar em prática na Universidade, nos departamentos de Geografia e nas aulas. E é, também, a geração que fecha o ciclo das escolas científicas regionais ou nacionais, com precursores, fundadores e patronos bem identificados, para se envolver na construção de conhecimento científico numa ótica transnacional, para alguns talvez mesmo universal.
António Gama é um dos últimos representantes da Escola de Geografia de Coimbra e um dos primeiros a romper explicitamente com ela. Francófono e francófilo, é sobretudo a autores de língua francesa, ou de diferentes nacionalidades mas com períodos de exílio em França (como Milton Santos), que recorre no seu esforço de estender a geografia às ciências sociais, trazendo as teorias sociais para a geografia e levando as questões do espaço para as ciências sociais, e de entender a evolução da disciplina à luz da história e da filosofia do pensamento científico. Ao contrário de outros geógrafos da sua geração, mais focados no mundo anglo-saxónico e em autores do domínio da geografia, António Gama enceta um percurso relativamente singular, beneficiando, sem dúvida, dos contactos e debates com amigos e colegas do Centro de Estudos Sociais.
Mas a preocupação pela teoria e pela filosofia, sempre presente nas aulas e nas conversas infindáveis que se prolongavam noite fora numa tasca, na casa de um amigo ou simplesmente de pé no passeio de uma qualquer rua, dava lugar a análises pormenorizadas e descritivas, recheadas de factos, datas, nomes e outras referências empíricas quando percorríamos uma cidade, atravessávamos um vale, visitávamos lugares mais ou menos recônditos, ou subíamos a um morro para observar a paisagem. Com os olhos brilhantes de entusiasmo, as suas explicações mostravam que a velha geografia dos Mestres estava mais viva do que julgávamos e que era bem mais interessante do que os debates teóricos e filosóficos que tivéramos meia hora antes deixavam antever.
António Gama amava os livros e a leitura, a reflexão e a controvérsia. Tinha relações de amor-ódio com figuras que considerava como sendo de referência – desde o jornalista Francisco Sousa Tavares, então cronista do vespertino A Capital, ao geógrafo Paul Claval, tantas vezes por ele citado nas aulas – exatamente porque os admirava e, por isso, o incomodava que não correspondessem às suas expectativas, que não partilhassem as suas perspetivas, que não lhe indicassem caminhos que ele gostaria de ter descoberto.
Generoso e convivial, António Gama gostava mais de tratar dos outros do que de si próprio. Na verdade, não era um tribuno eloquente nem um escritor profícuo. Cultivava, com orgulho e eficiência, uma oralidade de proximidade: apoiar os alunos e ex-alunos, divulgar junto dos colegas o último artigo que tinha lido ou o livro acabado de comprar, comentar com os amigos acontecimentos recentes, enquadrando-os e problematizando-os. A sua influência era capilar, por vezes quase subliminar: sim, foi o Gama que indicou, que leu, que disse, que explicou. Uma partilha serena e horizontal, sem tiques de autoritarismo professoral ou de superioridade de quem leu mais, de quem sabe mais. A sua relação com os outros baseava-se, em grande medida, nesse tipo de partilha permanente. Nunca me pareceu aspirar a ser Mestre, o novo Mestre, da geografia da Universidade de Coimbra. Gostava, isso sim, de ser reconhecido como uma fonte credível onde quem quisesse poderia beber com proveito. A iluminá-lo, a imensidão de livros amontoados que em sua casa o cercavam literalmente, mesmo nas divisões mais improváveis.
Distraído e desorganizado, apaixonado e crédulo, António Gama deixou-se enredar pela vida – ou ele próprio a enredou – em momentos decisivos do seu percurso pessoal e profissional. Podia ter sido o líder natural da geração de geógrafos portugueses do pós-25 de abril. Não foi, talvez porque esse objetivo não fazia parte das suas ambições. Afinal, o seu registo sempre foi o da proximidade e da interação pessoal. António Gama também podia ter sido o embrião de uma nova escola de geografia de Coimbra, eclética e cosmopolita mas agarrada ao terreno, calcorreável, tal como os velhos Mestres da Geografia a ensinavam e praticavam. Terá chegado cedo demais?
Munidos das mais sofisticadas técnicas bibliométricas, os estudiosos da ciência da segunda metade do século XXI terão dificuldade em encontrar António Gama num vasto firmamento repleto de estrelas científicas. Mas António Gama não é uma estrela, é um cometa. E os cometas, quando passam, iluminam-nos de tal forma que colocam em segundo plano qualquer estrela, mesmo a mais brilhante.
Em 31 de dezembro de 2014, um dia depois de ter feito 66 anos, António Gama faleceu em Coimbra, a sua cidade, uma cidade que conhecia e amava como poucos. Partiu um cometa invulgar, peculiar, com destino desconhecido mas, estou certo, com um período de retorno curto. Esse retorno é, afinal, uma tarefa dos que, da geografia ou de outras áreas do saber, gostam de valorizar, na academia ou fora dela, pessoas e ideias que deixam rasto, que marcam uma época e lugares específicos, e que, por isso, merecem ser recordadas, debatidas e celebradas.»
João Ferrão
ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
(Artigo de homenagem a António Gama Mendes, a publicar em breve na Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, vol. L, nº 99)
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