segunda-feira, agosto 28, 2006

lumpen

Na “rentrée” do PND, Manuel Monteiro anunciou o lançamento de uma petição nacional para que alguns beneficiários do Rendimento de Inserção Social (RSI) passem a prestar serviço comunitário: “Pretendemos que todos os titulares do RSI, com condições físicas para tal, passem a prestar serviço à comunidade, como a limpar matas ou jardins”. Isto porque, segundo Manuel Monteiro, as pessoas não podem estar a receber sem dar nada em troca.
A prestação de “serviços comunitários” parece constituir para a direita, nomeadamente para a direita populista, uma espécie de medida punitiva que deveria constar do Código Penal. Há cerca de dois anos, salvo erro, Bagão Félix afirmava que a solução (bondosa) para evitar a aplicação da pena de prisão no caso de mulheres condenadas pela prática de aborto, deveria consistir na prestação de “serviços comunitários”, para que estas pudessem “expiar” (o termo foi exactamente este) a sua culpa. Como se não bastasse a insensibilidade profunda e todo o imaginário de sacristia que está por detrás desta expressão, Bagão Félix acrescentaria ainda o sórdido detalhe de que estes serviços comunitários deveriam ser prestados em instituições sociais de apoio a crianças abandonadas e similares. Seguramente para que pudessem “expiar”, ainda mais e melhor, a sua culpa.
A prestação de “serviços comunitários” parece ser assim a receita para lidar com toda a espécie de lumpen crimimosos, quer sejam pobres e desempregados madraços que recorrem ao RSI quer sejam mulheres pecaminosas que recorrem ao aborto. Tudo se resume, afinal, a uma questão de troca.
Porque não se percebe (ou não se quer perceber) que o RSI não é um fim em si mesmo, mas sim um meio para elevar o potencial de empregabilidade e de inclusão, com todas as dificuldades e obstáculos desse processo, e que implica por isso a definição de um Plano de Inserção capaz de desenvolver as competências profissionais e sociais dos seus destinatários. Um Plano de Inserção que pode, obviamente, realizar-se em contexto de serviço comunitário, mas não com o simples fito de “pagar com trabalho" os trocos da prestação pecuniária a que o beneficiário tem direito.

sexta-feira, agosto 25, 2006

wireless (a silly joke)

De acordo com as rigorosas informações geográficas e toponímicas generosamente oferecidas pelo StatCounter, alguém algures em Braga tropeçou nos passos perdidos, à procura de “estatutos soldados romanos”, justamente enquanto contornava a rotunda que liga a Avenida António Macedo à Rua Nova da Estação e à Rua do Caires.
Pergunto-me que assunto poderá ter alguém em mãos, ou em mente, para se dedicar a esta pesquisa em plena circulação rodoviária. If you drive, no wireless.

quinta-feira, agosto 24, 2006

monólogo dialogante

A impossibilidade de não ouvir, na mesa em frente, o casal que estava a almoçar era exactamente igual à impossibilidade de não os ver. Dir-se-ia à partida que era um casal propriamente dito e, algum tempo mais tarde, que era um casal propriamente dito de amantes clandestinos. Um pouco depois já se poderia afiançar, contudo, que se tratava apenas de um casal de amigos, que se encontrara para almoçar e para permitir que ela desafogasse sobre ele, num extenso monólogo, as suas dúvidas, inquietações, interrogações, amores e ódios, em relação a uma terceira pessoa que era, perceber-se-ia entretanto, o ex-marido.
Foi bastante mais tarde que se ouviram as primeiras palavras dele, não mais do que uma curta frase, e nada de relevante como resposta para as questões e hipóteses que ela formulava. Porque as perguntas, dúvidas e reflexões interrogativas que ia colocando em cima da mesa iam sendo respondidas pela própria, sem haver sequer um gesto de concordância ou discordância por parte do seu interlocutor. Para pensar e se ouvir, bastava-lhe apenas falar com o confidente que se sentava, silencioso mas atento, do outro lado da mesa.

quarta-feira, agosto 23, 2006

limbo

(Still waters, 2006)

terça-feira, agosto 22, 2006

compromisso moral (2)

(Do artigo de André Freire, no Público de 21 de Agosto)

Às enormes diferenças de poderio militar que estão na base da gigantesca desproporção de vítimas e de destruição chamam os especialistas militares “guerra assimétrica". (…) Apesar da desproporção referida quanto aos efeitos da guerra, há um relativo consenso que Israel perdeu a guerra e o Hezbollah ganhou-a. O primeiro porque não conseguiu eliminar o segundo, nem sequer esmagá-lo, como pretendia. O Hezbollah terá vencido porque, além de ter aterrorizado as populações do Norte de Israel, conseguiu resistir sem ser destruído face a um dos mais forte exércitos do mundo.
(…) Mas há, na minha perspectiva, outras consequências desta guerra, mais de índole psicológica e cultural, mas nem por isso menos relevantes. Israel arvorou sempre a bandeira da superioridade moral face ao Hezbollah: a sua “guerra” era diferente da perpetrada pela milícia xiita, porque o Estado Judaico só procurava atingir alvos militares, enquanto que o adversário procurava primordialmente atingir alvos civis. Além disso, a milícia libanesa escudava-se entre a população civil e usava instalações civis para lançar os seus rockets. Porém, por um lado, independentemente dos julgamentos éticos, há que reconhecer que se o Hezbollah se escudava entre a população civil era porque de uma forma ou de outra tinha o seu beneplácito. Por outro lado, no contexto desta “guerra assimétrica”, não se percebe como poderia a milícia xiita deixar de usar de todos os meios ao seu alcance para resistir e atacar.
Mas perante as evidências da brutal destruição do Líbano perpetrada por Israel, bem como perante os massacres de civis (incluindo muitas crianças), como em Cana, ou perante a morte dos quatro funcionários da ONU, ou ainda face aos milhares de libaneses obrigados a fugir de suas casas, tornou-se cada vez mais difícil a Israel tornar verosímil a tese da superioridade moral da “sua guerra”. O exercício de hipocrisia e cinismo foi ao ponto de se considerarem irresponsáveis pelos mortos e feridos entre as populações civis apenas e só porque estas eram previamente avisadas para deixarem as suas casas. Não, esta “guerra suja” (…) foi pelo menos tão suja da parte israelita como o terá sido da parte xiita. E também por isso Israel perdeu esta guerra, desde logo perante as opiniões públicas (árabes e ocidentais).
Num cartoon intitulado A Crescente Ameaça, a revista The Economist apresentava um guerrilheiro do Hezbollah reduzido a pó por um tanque israelita. Porém, nas cenas seguintes, a partir das cinzas surgiam vários guerrilheiros em vez de um. Podemos ver aqui quer uma ilustração da subestimação da capacidade do Hezbollah, quer uma metáfora dos efeitos perversos desta guerra. Ou seja, tal como a “guerra ao terrorismo” da administração Bush, a estratégia musculada de Israel parece também ter o efeito perverso de alimentar a fúria e o radicalismo islâmico que diz pretender combater.

segunda-feira, agosto 21, 2006

ó vasco, e julgas que não eram capazes?

As classes médias nunca vão legislar contra os seus interesses. Estamos a pedir às putas que reformem o bordel.

(Vasco Pulido Valente, Diário de Notícias de 19 de Agosto)

sexta-feira, agosto 18, 2006

subway

(Todd Williams, Subway)
Final urbano de uma tarde de verão. Seguiam na carruagem cerca de vinte pessoas, a maioria das quais no regresso de mais um dia de trabalho (está-lhes estampado no olhar, mesmo que os pensamentos estejam agora noutras paragens). De quantas delas se poderia dizer que estavam ou eram felizes, considerando a expressão no rosto? À primeira vista nenhuma. Circunspecção, preocupação, alheamento, indiferença. Olhares e rostos ausentes, quando não tensos, como se cada qual circulasse sozinho numa carruagem vazia.
Mas as dúvidas começaram a surgir num pequeno foco de gente, menos silencioso, agitado por uma conversa entre a mãe com o filho ao colo, acerca de qual dos dois era mais feio. Um assunto demasiado sério para o miúdo, que o impedia de perceber a ironia carinhosa da mãe. Em redor, algumas pessoas acompanhavam com discrição o enredo, atrevendo-se a esboçar um breve sorriso no ponto A ou no ponto B da conversa, ou a até a deixar instalar alguma luz de presença no olhar. Mas a maioria permanecia como se nada se passasse.
Era nestas alturas que lhe apetecia subitamente apregoar em voz alta a venda, a preços irrecusáveis, dos albatrozes fresquinhos que trazia empalhados na pasta de couro.

quinta-feira, agosto 17, 2006

o alimento de pensar

"Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. (…) Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar."

(Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim)

quarta-feira, agosto 16, 2006

full moon rising


(Lisboa, Agosto 2006)
Stay tonight ■ We’ll watch the full moon rising ■ Hold on tide ■ The sky is breaking ■ I don’t never wanna be alone ■ With all my darkest dreaming ■ Hold me close
(David Sylvian, Dead Bees on a Cake, 1999)

quinta-feira, agosto 10, 2006

guerra, mentiras e media

(excertos do Editorial de José Manuel Fernandes de 4 de Agosto, no Público)

Depois do ‘massacre’ de Jenin – lembram-se? – uma grande revista europeia conseguiu um grande ‘furo’: entrevistou um velho que tinha perdido os nove filhos quando os tanques israelitas entraram nas ruas estreitas daquele povoado palestiniano. (…) Posteriores investigações jornalísticas revelaram que, afinal, os nove filhos do velho palestiniano estavam todos vivos. Mas a tal grande revista nunca publicou qualquer correcção.
Histórias semelhantes a esta repetem-se agora todos os dias. Ontem, por exemplo, confirmou-se que em Qana morreram menos de metade dos que se anunciara terem sido vítimas de outro ‘massacre’ israelita, só que a notícia não teve o mesmo relevo porque recolocar o drama numa dimensão menos trágica não tem idêntica capacidade de suscitar emoções. Assim se explica como também mereceu pouco destaque o ter-se sabido que, pouco antes do ataque que vitimou quatro soldados das Nações Unidas, um destes tinha enviado um e-mail a um seu superior a dizer que estavam a ser utilizados como ‘escudos humanos’ pelo Hezbollah. O que teve relevo foram antes as declarações do secretário-geral das Nações Unidas sobre aquilo que designou como ‘bombardeamento intencional’.
O principal desiquilíbrio da actual guerra não é militar: é não se entender que há verdades mentirosas.

Sobre a interpretação esguia, livre e abusiva dos factos relativos ao ataque que vitimou quatro soldados das Nações Unidas, o Daniel Oliveira já fez os esclarecimentos que se impunham.
E sobre a indignação recente de José Manuel Fernandes acerca das mentiras, do papel dos mass media e da guerra, estaremos também conversados, bastando lembrar a fé do editorialista na existência de armas de destruição massiva no Iraque. Convicção sobre a qual, que eu me lembre, "nunca publicou qualquer correcção". Talvez porque "o drama numa dimensão menos trágica não tem idêntica capacidade de suscitar emoções".

quarta-feira, agosto 09, 2006

back in the urss

Para o Ivan, de regresso a lugares onde o nome não causa tanta estranheza.

Flew in from Miami Beach BOAC
Didn't get to bed last night
On the way the paper bag was on my knee
Man I had a dreadful flight
I'm back in the U.S.S.R.
You don't know how lucky you are boy
Back in the U.S.S.R.
Been away so long I hardly knew the place
Gee it's good to be back home
Leave it till tomorrow to unpack my case
Honey disconnect the phone
I'm back in the U.S.S.R.
You don't know how lucky you are boy
Back in the U.S.S.R.
Well the Ukraine girls really knock me out
They leave the West behind
And Moscow girls make me sing and shout
That Georgia's always on my mind.
I'm back in the U.S.S.R.
You don't know how lucky you are boys
Back in the U.S.S.R.
Show me round your snow peaked mountains way down south
Take me to your daddy's farm
Let me hear your balalaika's ringing out
Come and keep your comrade warm.
I'm back in the U.S.S.R.
You don't know how lucky you are boys
Back in the U.S.S.R.

(The Beatles, White Album, 1968)

terça-feira, agosto 08, 2006

layout copyrights

(Secret Garden, 2006)
Para o Eduardo, autor do magnífico layout destes passos perdidos, seguramente a melhor coisa que este blog consegue mostrar. Por toda a inspiração.

domingo, agosto 06, 2006

coisas grandes com uma pequenina colher

Para o Pedro, solidário e atento em todos os gestos individuais do quotidiano.
“Para treinar os músculos da paciência o senhor Calvino colocava uma colher de café, pequenina, ao lado de uma pá gigante, pá utilizada habitualmente em obras de engenharia. A seguir, impunha a si próprio um objectivo inegociável: um monte de terra (50 quilos de mundo) para ser transportado do ponto A para o ponto B – pontos colocados a 15 metros de distância um do outro.
A enorme pá ficava sempre no chão, parada, mas visível. E Calvino utilizava a minúscula colher de café para executar a tarefa de transportar o monte de terra de um ponto para o outro, segurando-a com todos os músculos disponíveis. Com a colher pequenina cada bocado mínimo de terra era como que acariciado pela curiosidade atenta do senhor Calvino.
Paciente, cumprindo a tarefa, sem desistir ou utilizar a pá, Calvino sentia estar a aprender várias coisas grandes com uma pequenina colher.”

(Gonçalo M. Tavares, O Senhor Calvino, Editorial Caminho, 2005; Desenho de Rachel Caiano)

sábado, agosto 05, 2006

os nomes dos crimes

O que mais escandaliza no desfecho do caso Gisberta não são propriamente as medidas decretadas. O que revolta é ficar a percepção de que, para se justificar a opção por penas mais integradoras e menos repressivas, tenha sido necessário negar o nome às coisas e suavizar, inadmissivelmente, a gravidade de um crime hediondo.

quinta-feira, agosto 03, 2006

até quando?

Para não se ficar pela extrema má-criação, insulto gratuito e boçalidade, que fazem corar de vergonha o carroceiro mais rude, Alberto João Jardim deveria ser, em nome da mais elementar coerência, o primeiro subscritor de uma petição propondo a realização de um referendo sobre a independência da Madeira.
É verdade que já ninguém leva minimamente a sério tudo o que se diz nos ‘comícios’ do Chão da Lagoa (o que não diminui contudo a gravidade das palavras e dos factos). Mas continua a causar perplexidade que as mais altas instituições da República, a que se soma a complacência activa do PSD, reajam como se nada se passasse e se limitem a assobiar para o ar. Estarão à espera que Alberto João se extinga naturalmente para estabelecer níveis mínimos de decência, equilíbrio e seriedade nas relações entre o continente e a região autónoma?
Um regime democrático que permite tudo isto, continuadamente e na maior das impunidades, dificilmente se pode dar ao respeito.

terça-feira, agosto 01, 2006

compromisso moral (1)

(do artigo de José Vítor Malheiros, no Público de hoje)

“ (…) Como se pode dizer, como Shimon Peres, ‘não gostamos de ver uma criança tornar-se numa vítima de guerra, mas…’, seja o que for que vem depois do ‘mas’?
No diálogo com o Ocidente o Governo israelita usa a carta do seu regime democrático mas recusa o compromisso moral que está na base da democracia: tentar, com todas as forças, resolver os seus conflitos por meios pacíficos. Aí escolhe a pena de talião – sem se aperceber de que traz com ela o anátema da identificação com o adversário. Se a pena de talião fosse aplicada apenas aos que atacam Israel, Israel poderia ter argumentos. Mas quando essa vingança se alastra aos pais, aos vizinhos e aos filhos dos vizinhos dos seus inimigos, quando a vingança substitui a moralidade e se transforma no quotidiano da acção de um regime, isso apenas significa que a banalidade do mal infectou quase todo um povo – quase todo, porque ainda há homens e mulheres de boa vontade que restam em Israel – e o Kaddish que dizemos pelas crianças libanesas, palestinianas e israelitas se transformou na oração de defuntos pelas almas de seus pais”.