quarta-feira, agosto 13, 2003

moonlight post

Escreve com o olhar fixo na lua cheia que a janela do seu quarto alcança.
A aldeia conserva aquela paz nocturna que tão bem lhe conhece, feita de uma escuridão estival familiar, onde apenas se inscreve o sussurrar das cigarras e uma brisa tão imperceptível quanto agradável. Quase deseja neste momento caminhar até à rocha enorme que fica junto da capela, e que sempre lhe lembrou a abóbada granítica de uma misteriosa catedral subterrânea, extensa e côncava, de onde se pode olhar sem interferências o céu imenso de estrelas.
Não conseguiria viver aqui todos os dias. Nunca o conseguiu nem nunca o concebeu. Não se lembra sequer de soltar uma lágrima ou de uma saudade premonitória quando partiu. Deixou tudo como quem sabe que em certo sentido não parte, e como quem sabe que aqui não voltará para ficar, a menos que a vida a isso forçosamente obrigue. As memórias são mil e estão dentro de si, aflorando ao acaso, sem necessária lógica ou sequência, como se um qualquer anjo as tivesse retido e se divertisse agora a semeá-las no pensamento.

terça-feira, agosto 12, 2003

aeroporto drummond de andrade

Quando eu me encontrava presoNa cela de uma cadeiaFoi que eu vi pela primeira vezAs tais fotografiasEm que apareces inteiraPorém lá não estavas nuaE sim coberta de nuvensTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
Ninguém supõe a morenaDentro da estrela azuladaNa vertigem do cinemaManda um abraço para ti, pequeninaComo se eu fosse o saudoso poetaE fosses a ParaíbaTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
Eu estou apaixonado por uma menina terraSigno de elemento terraDo mar se diz terra à vistaTerra para o pé, firmezaTerra para a mão, caríciaOutros astros lhe são guiaTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
Eu sou um leão de fogoSem ti me consumiriaA mim mesmo eternamenteE de nada valeriaAcontecer de eu ser genteE gente é outra alegriaDiferente das estrelasTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
De onde nem tempo nem espaçoQue a força mande coragemPra gente te dar carinhoDurante toda a viagemQue realizas no nadaAtravés do qual carregasO nome da tua carneTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
Nas sacadas dos sobradosNa velha São SalvadorHá lembranças de donzelasDo tempo do imperadorTudo, tudo na BahiaFaz a gente querer bemA Bahia tem um jeitoTerra, terraPor mais distanteO errante naveganteQuem jamais te esqueceria.
(Caetano Veloso, 'Terra', 1998)

quarta-feira, agosto 06, 2003

sillycone theory

A natureza foi tão atenciosa e magnânime com a paisagem e com o clima do Rio que talvez se tenha descuidado um pouco com alguns bustos femininos.

sábado, agosto 02, 2003

cidade dos dois mundos

Copacabana é uma zona da cidade com um desenho ortogonal extenso que arruma os prédios, relativamente altos. Poderia definir-se como uma zona de classe média, não fora o facto de aqui confluirem todos os tipos de vida, todas as gentes, todas as cidades que o Rio contém. Há um movimento intenso de pessoas, de ocupações, de ritmos, de estatutos, de raças, de condições e estilos. Olhando para toda esta diversidade de tudo, entende-se melhor que a percussão faça parte da alma mais profunda deste país.
O território banhado pelo mar é pontuado por morros que emergem, abrupta e imponentemente, de onde em onde. Nas áreas mais planas, e com altitudes próximas das do nível do mar, sente-se que a cidade planeada e organizada se foi formando, como se línguas de lava se derramassem, preenchendo todos os interstícios disponíveis. É a paisagem normal de uma cidade do Novo Mundo, que lembra neste sentido a Cidade do México. Ruas desenhadas a régua e esquadro, as vidas a fervilhar de mil formas ao longo dos passeios e no frenesim caótico dos carros.
Depois fica a outra cidade, nitidamente diferente. É a cidade que trepa pelos morros acima, quase até ao topo, deixando apenas uma mancha verde de florestação, ou então áreas cinzentas, quando a encosta é demasiado íngreme, a descoberto. Esta é a cidade das imensas favelas, em tons de tijolo ou betão. Casas minúsculas e desordenadas, a maioria sem telhado, que se encavalitam nos declives vertiginosos. Há imagens impressionantes deste contraste. Sobretudo quando, ao virar de uma esquina, se depara com uma rua ladeada de prédios, ao fundo da qual surge abruptamente, no horizonte, um morro enorme e imponente com o seu casario de miséria a contrastar com a urbanidade ali mais próxima.
O modo como o morro cresce no olhar sustém de espanto, literalmente, a respiração.

rio de janeiro

Apenas dei verdadeiramente conta de estar aqui quando vi pássaros com plumagem amarela, pouco maiores que pardais, a saltitar de onde em onde no areal branco da praia.