o bloco em discussão
dez ideias para a construção de um novo bloco social
Alexandre Abreu, João Rodrigues, Nuno Serra e Nuno Teles
1. A esquerda nunca desiste
À esquerda e à direita, multiplica-se uma chantagem com intensos efeitos desmobilizadores: sair do euro é o desastre; o euro é o nosso destino. De forma voluntária ou involuntária, é todo um programa de submissão que se desenha perante o agudizar da crise. Num contexto em que a austeridade patrocinada pelas instituições europeias e pelo FMI intensifica a crise, com a cumplicidade de governos subalternos, a esquerda tem de ter alternativas realistas globais e assumir todas as consequências das suas propostas corajosas para superar a economia da dívida e da inserção dependente, como é o caso da auditoria democrática e da reestruturação da dívida pública por iniciativa das periferias. Uma proposta que envolve necessariamente a perspectiva de incumprimento por parte do Estado Português e cujas implicações a esquerda tem de ter coragem para enfrentar. Só as alternativas globais dão hoje esperança. E só a esperança pode mobilizar uma ampla aliança social e política capaz de construir outro país e outra Europa depois da ruína neoliberal.
2. A derrota da esquerda é o outro nome deste euro
As políticas neoliberais estão inscritas na arquitectura deste euro, nisto todos concordamos. Mas poucos conseguem identificar a responsabilidade central desta arquitectura nos desequilíbrios estruturais que estão na raiz dos ataques especulativos de que somos vítimas, focando-se antes no conjuntural aumento de dívida pública. As políticas neoliberais da troika atacam o salário directo e indirecto, o Estado social, mudam estruturalmente as relações entre as forças sociais, enfraquecem o que faz a força do trabalho organizado – o direito do trabalho, a negociação colectiva, o subsídio de desemprego – e asseguram a captura privada de recursos públicos. Nas periferias, estas políticas e a manutenção de um euro concebido para servir os interesses das economias do centro garantem anos sem fim de desenvolvimento do subdesenvolvimento, de empobrecimento, de atrofiamento das energias vitais das classes populares e de desmobilização, assegurando a derrota permanente de uma esquerda sem alternativas estruturais, sem um projecto hegemónico consistente para a sociedade, agarrada à defesa de serviços públicos sem futuro numa economia cada vez mais medíocre.
3. Sair do euro tem de estar em cima da mesa
A esquerda que propõe a reestruturação da dívida como arma das periferias tem de estar preparada para o cenário de saída do euro num contexto novo, marcado por uma intensa agudização das fracturas entre centro e periferia, acentuado pela acção inconsciente das forças da especulação financeira. A esquerda tem a obrigação ético-política de preparar desde já o país para esse cenário, estruturando propostas robustas que minimizem os seus custos e potenciem os seus benefícios. À esquerda não basta fazer análise. À esquerda mobilizam-se todas as alavancas e trabalham-se politicamente todas as perspectivas, porque a esquerda deve pretender construir um projecto socialista hegemónico para Portugal. Porque a esquerda quer governar.
Recusar, por princípio, um dos mais prováveis cenários que se desenham no horizonte – a saída do euro – é desistir do combate por uma outra economia, por uma outra trajectória para o país. Uma trajectória definida pela criatividade e energia de um amplo bloco social transformador. Os seus adversários são claros: o capital financeiro, os grandes grupos rentistas que com ele estão imbricados e os seus ideólogos, ou seja, os que vivem da expropriação financeira e da pilhagem de bens comuns e os que as legitimam à sombra do liberalismo. Só uma política de alianças que possa vir a incorporar fracções subalternas de grupos sociais por mobilizar, que vão para lá das classes trabalhadoras e que incluem sectores do capital produtivo igualmente afectados pela austeridade recessiva, pode recuperar as capacidades económicas do país e avançar com uma política de re-industrialização, que é parte de um processo mais amplo de modernização económica, ao pressupor uma estreita imbricação com a manutenção e o aprofundamento do Estado social.
4. Como deve a esquerda europeísta formular a questão da saída do euro?
Qualquer alteração da arquitectura europeia que supere a economia de austeridade tem de partir da iniciativa de governos nacionais, pressionados política e socialmente e articulados com outros governos na mesma situação. As euro-obrigações, as alterações necessárias à actuação do BCE ou o reforço do papel do Banco Europeu de Investimento são necessários no curto prazo para uma reconfiguração sustentável do euro. As convergências fiscal e ao nível dos direitos sociais e laborais e a transformação das regras do mercado interno de modo a permitir políticas industriais dignas desse nome também têm de ser favorecidas. Estas alternativas não surgirão em resultado da clarividência das elites políticas do centro europeu. As periferias têm por isso de usar a arma da reestruturação da dívida como uma das alavancas políticas mais promissoras para forçar mudanças que terão de ter um pendor federalista, visando, ainda que num prazo mais longo, a instituição de mecanismos adequados de legitimação democrática.
Não há verdadeiro orçamento europeu ou moeda europeia sem Estado Europeu. Esta proposta implica uma estratégia de tensão que encara de frente a bifurcação europeia e a submissão da troika interna: federalização democrática ou aceleração do fim do euro. Este último cenário será fruto de uma ruptura deliberada ou da acção inconsciente das forças de mercado, já que não é do interesse político-económico do centro europeu expulsar qualquer país do euro. Assim que a opinião pública se aperceba disso, a possibilidade de rebelião aumentará.
5. Custos e benefícios da saída do euro
Sair do euro tem custos? Claro que sim. Uma saída do euro organizada teria de antecipar um conjunto de problemas: a escassez de divisas, dívida externa denominada em euros de algumas empresas, provisão de bens alimentares e energéticos. Há reflexão neste campo (uso das reservas de ouro, necessidade de acordos bilaterais) que precisa de ser aprofundada. Sejamos directos: tal opção implicaria meses de perda de poder de compra dos salários e das pensões, devido ao aumento dos preços e à turbulência. Mas sejamos verdadeiros: esta perda, fruto da desvalorização cambial, é temporalmente mais curta, mais facilmente reversível e menos corrosiva do que o processo de ajustamento salarial em que estamos envolvidos e que opera através da pressão do desemprego e da destruição dos sindicatos e do Estado social. Além disso, o valor real das dívidas, agora denominadas na nova moeda, também diminuiria em termos relativos, devido à inflação prevista, ajustando-se aos rendimentos dos portugueses. Por outro lado, as vantagens da recuperação da soberania monetária não se limitam ao necessário aumento da competitividade externa da economia portuguesa. A possibilidade de financiamento directo ao Estado e de adopção de uma política monetária direccionada para o crescimento são aspectos essenciais do processo que assumem uma importância central na avaliação deste cenário. Acrescem ainda a obrigatoriedade de instituir controlos de capitais e de nacionalizar o sistema financeiro, entre tantos outros elementos de mudança.
6. Recusar rótulos
As acusações de nacionalismo, ou de colagem pura e simples à direita, no contexto da discussão sobre a saída do euro procuram estreitar o debate de forma pouco séria. O delineamento de uma estratégia consistente e sustentável de saída apresenta-se com uma das poucas armas negociais de que os Estados hoje dispõem no enquadramento europeu. Não se pode, de facto, defender uma reestruturação da dívida liderada pelos devedores sem colocar este cenário em cima da mesa. Trata-se de um debate que se encontra numa fase ainda embrionária e que requer muito mais trabalho colectivo. Recusamos por isso as tentativas de, à partida, sugerir como inevitáveis certas consequências trágicas da saída do euro (como dizer que as dívidas das famílias à banca continuariam em euros), utilizando de forma pouco séria os exemplos de outros países. Aliás, não se pode recusar a comparação com países que reestruturaram as suas dívidas (processo que o BE defende), apelando a exemplos (como o da nacionalização da banca irlandesa) que nada têm a ver com a situação do nosso país. O medo não pode paralisar o debate.
Assinalamos, entretanto, que a saída do euro não está, à partida, vinculada a nenhuma opção ideológica – nem de esquerda, nem de direita. Recusamos portanto a fetichização monetária que entende a simples autonomia monetária como projecto político. Sabemos que não é na moeda, mas sim na política que a controla e manipula, que se fazem as opções ideológicas. No euro ou fora dele. Só uma discussão séria e plural pode indicar as escolhas disponíveis à esquerda neste campo.
7. A esquerda não pode limitar as suas propostas e reivindicações à esfera estatal
Se a defesa dos serviços públicos e a reforma fiscal são parte necessária do campo de proposta da esquerda, esta não pode ignorar o contexto agudo de crise económica em que o país está mergulhado. As respostas e as propostas de hoje não podem ser as mesmas de há uma década. O diagnóstico sobre os problemas estruturais da economia portuguesa – nomeadamente a dívida externa, o sistema financeiro disfuncional e o carácter rentista do grande capital nacional – implicam a premência de um programa de recomposição da economia portuguesa. O papel do Estado na economia, a refundação do seu sistema de crédito e a articulação com os interesses e a participação dos trabalhadores na definição de um rumo de prosperidade e justiça social são hoje mais urgentes do que nunca.
8. Não há resistência sem alternativa
O Bloco apresenta-se hoje perante o país sem alternativa económica. As propostas – sem dúvida acertadas – de reestruturação da dívida assente numa auditoria democrática e de repúdio de partes dessa mesma dívida são apresentadas no debate público como a solução não só para o país mas também para os credores: à reestruturação seguir-se-ia um retorno aos mercados de capitais a taxas de juro razoáveis, mantendo-se assim um modelo que continuaria assente na financeirização da economia. Em contraste com esta posição, consideramos que os interesses dos países da periferia e do capital financeiro são hoje inconciliáveis: a saída da crise não se faz através da mera regularização das contas públicas nacionais, mas sim respondendo aos desequilíbrios estruturais da economia portuguesa. Perante o abismo que se aproxima, são inevitáveis rupturas face ao consenso actual. É responsabilidade do BE ter alternativa e liderar a recomposição de alianças sociais e políticas que necessariamente terá lugar. Só assim conseguiremos colocar os interesses dos trabalhadores na vanguarda da mudança.
9. Tornar credível a mudança, tornar possível o futuro
Apesar da acumulação de sinais evidentes em contrário, a sociedade portuguesa continua a encarar resignadamente a austeridade como caminho único – realista e inevitável – para a saída da crise. A inexistência de condições para uma discussão verdadeiramente democrática, informada e plural das alternativas no espaço público e a determinação tenaz das lideranças europeias em prosseguir o aprofundamento do projecto neoliberal dificultam a recusa consequente, por parte do eleitorado, do abismo a que a opção imposta necessariamente conduz. A inversão desta trajectória, porém, não depende apenas do fim da hegemonia do pensamento único nos espaços de debate, nem de uma improvável mudança de orientação das actuais lideranças europeias. Tal como será ilusório apostar, com esperança desmesurada, no «poder das ruas» e da contestação social, cuja insuficiência o caso grego parece demonstrar de forma lapidar.
Importa por isso reconhecer também que, até hoje, o Bloco não conseguiu apresentar uma alternativa verdadeiramente substantiva e credível – aos olhos dos cidadãos – para o memorando da troika. Isto é, uma alternativa capaz de ombrear e responder, de forma combativa, à proposta austeritária para a situação em que o país se encontra. É nessa incapacidade que reside porventura o maior obstáculo à inflexão das opiniões públicas e do eleitorado, que se traduza numa necessária e urgente recomposição parlamentar e governativa. A apresentação de um projecto claro, coeso e credível para a resolução dos problemas do país é por isso uma condição necessária para a alteração da relação de forças. Não basta a resistência e a agitação: é tempo de sermos exigentes connosco próprios.
10. A esquerda não dispensa entendimentos e convergências
O poder do projecto neoliberal, renascido e revitalizado, e a subsequente imposição das soluções austeritárias que se lhe associam, é hoje tão forte como surpreendente, se pensarmos que a crise financeira parecia ter esboroado – com ampla evidência – os pilares que o sustinham. Dos impactos nefastos da desregulamentação dos mercados à falência manifesta das fórmulas do Estado mínimo, passando pela evidente cedência que significaram as terceiras vias, tudo parecia indicar que o tempo seria, novamente, devolvido às esquerdas.
O combate pela superação deste regresso tão inesperado como pujante da ortodoxia neoliberal não é – contudo – nem fácil nem simples, exigindo um amplo diálogo para a construção plural de alternativas coesas. Os tempos não são de enquistamento e trincheira: as dificuldades impõem um espírito capaz de concertar alianças e convergências.
Entendemos, por isso, que a estratégia do Bloco para os tempos que se avizinham tem de passar por dois objectivos em estreita articulação. Por um lado, contribuir para a junção das forças sociais e políticas anti-austeritárias, tendo em vista influenciar substantivamente os parâmetros que enquadram o debate público e a decisão política. Por outro, procurar que prevaleçam, no seio do debate entre as esquerdas, as posições mais progressistas e eficazes.
O que significa, a nosso ver, que o Bloco tem de saber antecipar e suscitar a apresentação de alternativas globais, claras e consistentes à esquerda, identificando aspectos susceptíveis de estabelecer convergências com as outras forças políticas. E recusar, naturalmente, leituras apressadas e simplistas das tácticas e dinâmicas internas de partidos como o PS ou o PCP. A relevância futura do Bloco, medida em termos da sua capacidade de influenciar o debate político e as decisões que daí decorrerão, não depende portanto da sistemática afirmação das suas diferenças nem do seu distanciamento em relação aos partidos mencionados. Depende, isso sim, da sua capacidade para convocar alternativas credíveis, que consigam mobilizar consensos alargados.
Com uma estratégia clara, a esquerda socialista estará em melhor condições de protagonizar entendimentos flexíveis com todas as forças sociais e políticas que possam contribuir para a concretização, a várias escalas, de um programa de mudança. Com uma linha clara, a esquerda pode e deve estar menos preocupada em encontrar linhas de demarcação entre as forças políticas que a constituem e mais em encontrar pontos de entendimento.
A nossa responsabilidade é clara: ser o motor da construção de um amplo bloco social apetrechado com um programa ambicioso, que faz a luta toda, e é assim capaz de disputar a hegemonia e de devolver a esperança ao país.
(Contributo para os debates em curso sobre os desafios que se colocam ao Bloco de Esquerda perante a actual situação nacional e europeia).