o bloco em crise
das explicações aparentes às razões profundas
1. O desaire do Bloco de Esquerda nas últimas eleições legislativas, com a perda de cerca de metade do seu eleitorado, é demasiado expressivo para que possa digerir-se recorrendo a justificações «convencionais». De facto, nem é convincente a tese sobre as dificuldades da «percepção da mensagem por parte do eleitorado» (a consciência sobre o fracasso da via austeritária é crescente e suficiente para pensar que ela configura já um segmento muito apreciável da opinião pública), nem colhe de modo muito plausível o argumento de que o Bloco enfrentou estas eleições em circunstâncias conjunturais demasiado adversas (por exemplo, o memorando da troika, ao balizar forçosamente a governação nos tempos mais próximos, independentemente da vitória do PS ou do PSD, permitiu apesar de tudo aliviar um pouco a pressão sobre o «voto útil»). Por conseguinte, dispensar o partido de uma séria introspecção, tomando os últimos resultados eleitorais como simples percalço, ou mero resultado de factores externos desfavoráveis, é o primeiro passo para não compreender o significado mais profundo desta derrota.
2. Numa espécie de diagnóstico propositivo, têm sido apresentadas algumas pistas para superar a indisfarçável crise em que o Bloco se encontra. Entre elas, destacam-se a necessidade de renovação das lideranças (através da «passagem de testemunho», nos «lugares de topo», a gerações mais novas de militantes); e a necessidade de reforço da implantação social do partido (que explicaria, pela sua insuficiência, o facto de o PCP/PEV não ter sido alvo de um desaire eleitoral como aquele com que o Bloco se confrontou no passado dia 5 de Junho). Estas duas teses para a mudança (renovação de lideres e reforço da impregnação social do partido), merecem uma discussão profunda, sem a qual se corre o risco de servirem de argumentos que apenas ocultam (e adiam) o debate sobre o que é essencial.
3. A questão da renovação das lideranças é sempre, em abstracto, um assunto relevante num partido que se quer vivo e dinâmico. Contudo, do ponto de vista da superação da actual situação, esta saída não parece configurar uma resposta que vá ao encontro dos problemas de fundo. Desde logo, porque dificilmente explica os saldos eleitorais obtidos há apenas dois anos atrás, em 2009, quando estas mesmas lideranças conduziram o Bloco aos seus melhores resultados de sempre. E não se vislumbra, em segundo lugar, em que medida essa renovação poderá responder eficazmente a questões que com ela se relacionam, nomeadamente as que dizem respeito a culturas instituídas no funcionamento do partido. De facto, se com a questão das lideranças se pretende trazer para o debate o conjunto de culturas e práticas de funcionamento (susceptíveis de explicar a crise em que o Bloco se encontra), então o verdadeiro problema reside nessas mesmas culturas e práticas (que assim sendo devem estar no centro da análise) e não na simples «mudança de rostos».
4. Por outro lado, a tese que procura explicar o contraste entre os resultados eleitorais do Bloco de Esquerda e do PCP/PEV (que suportou bastante bem o suposto embate do passado dia 5 de Junho), através da insuficiente consolidação de formas de articulação com estruturas sociais e políticas carece – neste contexto – de precisão. Se é certo que o Bloco sempre valorizou formas de diálogo e relação com movimentos sociais, sindicais e associativos, é igualmente verdade que o valor intrínseco dessa articulação reside no potencial de construção programática que esses laços permitem e não numa espécie de constituição de «rede social e política de suporte» ao partido em actos eleitorais. Aliás, de um ponto de vista estritamente simbólico, reivindicar a formação dessa «rede de suporte» eleitoral não é muito diferente de pressupor a necessidade de existência de uma «frota de autocarros» com militantes permanentemente disponíveis, como sucede noutros partidos. O eleitorado do Bloco é, neste sentido, um eleitorado diferente, mais exigente e por natureza mais difícil de fidelizar. Essa é uma circunstância distintiva do partido, com a qual ele tem que saber viver. De facto, a fidelidade do eleitorado do Bloco depende muito mais da capacidade continuada que este revele para alcançar uma definição programática e um perfil politico crescentemente consistentes e credíveis, do que da existência de uma espécie de «seguro eleitoral», assente na implantação do partido em movimentos e estruturas sociais e políticas.
5. Ora, é justamente na capacidade que o Bloco de Esquerda revele, no campo da construção consistente e credível do seu perfil programático e imagem política, que reside um dos pilares fundamentais em que deve assentar a reflexao. Tal como é também a partir deste prisma que devem ser interpretadas, e devidamente aquilatadas, duas decisões que interferiram no resultado eleitoral obtido: a moção de censura e a recusa do encontro com a troika. No primeiro caso, o problema não se situa na moção de censura em si (apesar de abrir teoricamente as portas ao ingresso da direita no poder). Resulta sobretudo da evidência de que a moção foi motivada por uma lógica de estrito combate partidário (com o PC), a que se somou a tentativa de «limpar a face» na sequência do apoio a Manuel Alegre nas eleições presidenciais. E, neste passo, o Bloco deu ao eleitorado um inequívoco sinal de imaturidade politica. No segundo caso, a decisão de não reunir com a troika reforçou – simbolicamente – um dos mais delicados «calcanhares de Aquiles» do Bloco: o seu sentido de responsabilidade institucional. Não se tratava, como todos bem sabemos, de negociar com a troika. Tratava-se sim de dar voz à contestação fundamentada da solução austeritária e, igualmente, de projectar com clareza uma imagem de sentido de pertença e de responsabilidade na ocupação do espaço político e partidário. A imaturidade politica e institucional que o Bloco revelou nos episódios da moção de censura e da reunião com a troika deitaram a perder uma longa e difícil luta contra o estigma da «irresponsabilidade», que se colou ao Bloco de Esquerda desde a sua fundação.
6. Chegados aqui, é importante sublinhar que o principal problema que se poderia antever num partido que resulta da convergência de correntes ideológicas e de partidos próximos entre si, mas ao mesmo tempo suficientemente distintos, estaria no plano da construção programática. Ora, o que justamente sucede é que – a este nível - o Bloco de Esquerda fez apesar de tudo um percurso muito positivo de conciliação de diferentes visões e ideologias. De facto, são inegáveis os avanços que o Bloco foi alcançando em matéria de proposta política concreta nos distintos domínios da governação, com uma fundamentação que é, apesar de tudo, cada vez mais sólida e credível. De facto, partindo das diferenças políticas e ideológicas das forças que congrega, o Bloco de Esquerda foi conseguindo construir um programa crescentemente coeso e unificador, mas que apenas aparentemente sugere a diluição progressiva (e discutida) dos alinhamentos distintos que o constituem. Se pode afirmar-se que o Bloco fez bem o «trabalho de casa», no plano programático, já o mesmo não se pode dizer quanto ao empenho em fazer «o trabalho em casa», isto é, no plano da discussão e convergência ideológica interna.
7. Assim, o problema de fundo com que o Bloco de Esquerda hoje se confronta reside no seguinte paradoxo: a capacidade evidenciada para conseguir uma elevada convergência programática não teve paralelo na capacidade (ou vontade) para dissolver e articular de modo progressivo (e efectivo) as diferenças existentes entre os partidos e as sensibilidades fundadoras (a que deve juntar-se, naturalmente, a «corrente» dos não-alinhados em nenhuma das sensibilidades iniciais). Os diferentes pontos de vista ideológicos de partida encontram-se, de facto, basicamente intactos, em resultado de um profundo défice de discussão «meta-programática». Materialmente, este imobilismo torna-se evidente na lógica excessiva de «quotas e lugares por tendência» ou no jogo de equilíbrio e compensação em decisões quotidianas (como demonstra o ziguezaguear entre o apoio a Manuel Alegre, a moção de censura e a recusa do encontro com a troika). Mais recentemente, ganharam redobrada expressão e visibilidade manobras de marcação e colonização de espaço no interior do partido, incluindo ofensivas (por vezes cirúrgicas) orientadas para isolar posições ou sectores críticos. A cristalização das diferentes correntes no seio do Bloco agudizou as distintas perspectivas ideológicas que as mesmas encerram e marcou crescentemente as lógicas e culturas de funcionamento do partido. O consenso programático foi deixando de ser suficiente para encobrir o desequilíbrio nas sensibilidades que constituem o Bloco, saindo reforçada para o exterior a imagem de um partido acantonado na lógica do «contra-poder» que frustra, naturalmente, as expectativas de uma parte muito significativa do seu eleitorado.
(contributo para a discussão em curso no Bloco de Esquerda)