Uma epidemia abateu-se sobre um bairro, ameaçando sobretudo as casas perifé-ricas, mais frágeis. Apesar de a vida do bairro ser gerida entre as famílias, se-gundo processos democráticos por todos estabelecidos, os moradores das casas do centro, mais poderosos, entenderam ordenar aos moradores da periferia o que deviam fazer para evitar (ou curar) a epidemia. Num claro abuso de poder face às regras vigentes, não se limitaram portanto a dizer que era preciso estancá-la, acrescentando
como o deviam fazer. E a todo o momento lembravam os restantes moradores que o incumprimento das suas orientações clínicas poderia acarretar, em última instância, a expulsão da comunidade.
A dita epidemia consistia numa infecção, que consumia os glóbulos brancos das vítimas. O tratamento estipulado pelos moradores das casas do centro, em lugar de recomendar o reforço controlado dos níveis de leucócitos (e de promover a sua distribuição contratualizada pela comunidade), consistia estranhamente em proceder à sua extracção do organismo dos moradores infectados ou em risco de infecção. Segundo eles, uma sucessão de punções na medula haveria de afastar a doença, ou impedir o seu aparecimento perante os primeiros sinais de vulne-rabilidade.
Sucede que o organismo responsável pela epidemia não se comovia com o esforço clínico que era sucessivamente imposto às vítimas. Isso era estranho, e até contrário, à sua natureza. De facto, quanto mais débeis estas fossem ficando, com os tratamentos a que eram sujeitas, mais a epidemia podia livremente alastrar, obter os seus ganhos na batalha que travava com os moradores das periferias e, assim, demonstrar e exercer o seu poder.
Perante os fracassos sucessivos da terapêutica imposta pelos moradores do centro aos moradores da periferia, a culpa era constantemente assacada a estes últimos, por mais que cumprissem à risca as orientações clínicas estipuladas. Por vezes, logo após cada punção, os moradores do centro até mostravam a sua satisfação pelo facto de os moradores da periferia acatarem as suas instruções de forma tão obediente. Mas ao menor sinal de fracasso, a uma debilitação acrescida causada pelo tratamento, sucedia-se a repreensão e um novo programa de cura, ainda mais severo, que diminuía sem cessar o nível de glóbulos brancos disponíveis e a capacidade de os produzir.
O que se tornava mais estranho nesta história era o facto de os moradores do centro,
perante toda a evidência acumulada, nunca terem aparentemente colo-cado a hipótese de o erro estar no tratamento estabelecido e sempre preferirem depositar a culpa nos moradores da periferia, por mais que estes o cumprissem com escrúpulo. Para uns, isso devia-se a uma obsessão com a terapêutica, de tal forma cega, que os impedia de constatar como a mesma era ineficaz e, até, contraproducente. Para outros, podia muito bem dar-se o caso de os moradores do centro do bairro verem na epidemia uma belíssima oportunidade para se livrarem dos moradores da periferia.
(Postado originalmente no
Ladrões de Bicicletas)