escritos proscritos
Trazendo dados documentalmente novos, as recentes 'revelações' do ‘Evangelho de Judas’, não contém todavia nenhuma leitura particularmente nova sobre a vida de Cristo. De facto, quem viu ‘A Última Tentação’, de Martin Scorsese, encontra também aí a proposta de um Judas (e, por simetria, de um Pedro) radicalmente diferente daquele que a Igreja nos apresenta desde os inícios do Catolicismo.
Segundo esta perspectiva, Judas teria sido, por razões e circunstâncias que nos escapam, o apóstolo ‘escolhido’ para cumprir a mais difícil de todas as missões: ajudar Cristo, a pedido do próprio, a libertar-se das suas ‘vestes’, do seu corpo, a libertar a sua divindade. Missão essa que, ironia das coisas e das palavras, Judas teve a coragem de não trair (quando, ironicamente, seria o apóstolo Pedro, o eleito para pilar da Igreja, quem acabaria por trair Jesus (só por eufemismo se pode designar de ‘negação’ o seu gesto triplamente consecutivo).
Uma das questões mais relevantes colocadas pelo 'Evangelho de Judas' é contudo a que incide na escolha humana da Palavra divina. Porventura já se saberia, mas é neste contexto que se generaliza a informação segundo a qual os Quatro Evangelhos poderiam afinal ser cerca de Trinta, não fora a escolha discricionária de um homem, o Bispo Ireneu (130-202 DC) recair sobre Marcos, Lucas, Mateus e João, banindo os restantes cerca de 26 textos. Os critérios da selecção, curiosamente, parecem ter muito pouco a ver com razões teológicas ou religiosas, repousando, isso sim, em critérios meramente cabalísticos e cosmológicos (quatro são as estações do ano, quatro são os ventos dominantes, quatro são os pontos cardeais).
Para além do argumento do número (que se outro fosse, outro seria o volume de fascículos do Novo Testamento), estes eram igualmente os quatro textos que registavam uma maior adesão por parte dos crentes iniciais do Cristianismo, o que, por sua vez, não sucede por acaso. Trata-se dos textos mais simples, que seguem o registo da narrativa dos episódios (os casamentos, as refeições, os milagres, etc.), centrando-se no contar de histórias, que os torna mais acessíveis à generalidade dos fiéis. Já os restantes textos (os apócrifos e sobretudo os gnósticos) tendem a assumir um registo mais literário e filosófico, com uma dimensão reflexiva mais pronunciada, recorrendo a analogias e metáforas, e exigindo assim um maior uso da razão. Motivo pelo qual se tornariam menos acessíveis e populares, para as massas.
A verdade é que a selecção da ‘Verdade’ (a ter que ser feita alguma selecção, o que é obviamente discutível) se inscreve muito pouco em razões de natureza teológica ou religiosa, como seria à partida de esperar. O que coloca, por sua vez, as seguintes questões: Que legitimidade assiste ao critério de separar os ‘textos doutrinários’ dos textos ditos ‘desviantes’? Porque razão estes quatro textos passam a constituir ‘A Palavra’, e os restantes não? Porque não se tornou acessível (sem destruir nem censurar) o quadro completo de narrativas da vida de Cristo, mesmo que podendo afirmar-se – subjectivamente - que havia umas mais ‘verdadeiras’ que outras? Se o valor histórico e documental dos textos é sensivelmente o mesmo, porque razão uns são credíveis e os outros não?
As tentativas de exclusão dos textos gnósticos do baú da palavra divina, no discurso mais ortodoxo da Igreja Católica, passa muitas vezes pela sua classificação enquanto emanações das 'seitas’, com o evidente sentido pejorativo que a palavra encerra (apesar da correcção conceptual do seu uso). Com efeito, ‘seita’ vem do Latim secta, que significa ‘linha de conduta, princípios, maneira de viver’. Segundo o dicionário, traduz uma ‘opinião, que se destaca de um corpo de doutrina (sublinhados meus) e que é seguida por muitos; facção; comunidade herética’. Ou seja, seita é uma opinião, uma facção, que se desvia da doutrina, tornando-se por isso herética. O que, em contexto religioso, não pode significar senão desvio da Verdade. E qual a razão para tal, se não foram sequer fundamentos teológicos e religiosos a presidir à selecção dos quatro Evangelhos?
Este modo de catalogar as ‘narrativas desviantes’ da vida de Cristo procura ignorar que o movimento gnóstico tem nas suas raízes a frase bíblica relativa ao facto de ‘Deus ter criado o homem à sua imagem e semelhança’, daí advindo a convicção de que cada ser humano teria dentro de si uma ‘centelha divina’. Centelha divina que é, justamente, a ‘razão’, a capacidade de pensar e conhecer (gnose). Ou seja, segundo os gnósticos todos os seres humanos têm capacidade para conhecer, para interpretar, para fazer uso da razão. Pelo que, objectivamente, o acesso à verdade é neste sentido tão legítimo como o é o caminho da fé e da doutrinação para os ‘não gnósticos’.
O problema da fé, nos moldes em que a Igreja Católica a entende, é justamente o da impossibilidade declarada de se fazer acompanhar pela razão, constituíndo o dogma a expressão máxima desta incompatibilidade e a rejeição das correntes gnósticas uma consequência desta recusa da Igreja em que se faça uso da razão no universo religioso. E é também por esta incompatibilidade, e por esta recusa da razão, que a Igreja Católica tem tendência para lidar mal com a liberdade humana, com o livre pensamento, com a subjectividade e com a consciência individual.
Leva e levará tempo, imenso tempo, até que se aceite que a verdade é uma procura e não um dogma, um processo e não um apriorismo. Como se levou demasiado tempo até que a Pena de Morte, por exemplo, fosse claramente condenada pela mais elevada hierarquia católica. Ou como levará ainda muito tempo, tanto maior quantos os retrocessos que puderem entretanto surgir, para que se termine com a injustificável e medieval indigência de impedir o acesso das mulheres ao sacerdócio.
Segundo esta perspectiva, Judas teria sido, por razões e circunstâncias que nos escapam, o apóstolo ‘escolhido’ para cumprir a mais difícil de todas as missões: ajudar Cristo, a pedido do próprio, a libertar-se das suas ‘vestes’, do seu corpo, a libertar a sua divindade. Missão essa que, ironia das coisas e das palavras, Judas teve a coragem de não trair (quando, ironicamente, seria o apóstolo Pedro, o eleito para pilar da Igreja, quem acabaria por trair Jesus (só por eufemismo se pode designar de ‘negação’ o seu gesto triplamente consecutivo).
Uma das questões mais relevantes colocadas pelo 'Evangelho de Judas' é contudo a que incide na escolha humana da Palavra divina. Porventura já se saberia, mas é neste contexto que se generaliza a informação segundo a qual os Quatro Evangelhos poderiam afinal ser cerca de Trinta, não fora a escolha discricionária de um homem, o Bispo Ireneu (130-202 DC) recair sobre Marcos, Lucas, Mateus e João, banindo os restantes cerca de 26 textos. Os critérios da selecção, curiosamente, parecem ter muito pouco a ver com razões teológicas ou religiosas, repousando, isso sim, em critérios meramente cabalísticos e cosmológicos (quatro são as estações do ano, quatro são os ventos dominantes, quatro são os pontos cardeais).
Para além do argumento do número (que se outro fosse, outro seria o volume de fascículos do Novo Testamento), estes eram igualmente os quatro textos que registavam uma maior adesão por parte dos crentes iniciais do Cristianismo, o que, por sua vez, não sucede por acaso. Trata-se dos textos mais simples, que seguem o registo da narrativa dos episódios (os casamentos, as refeições, os milagres, etc.), centrando-se no contar de histórias, que os torna mais acessíveis à generalidade dos fiéis. Já os restantes textos (os apócrifos e sobretudo os gnósticos) tendem a assumir um registo mais literário e filosófico, com uma dimensão reflexiva mais pronunciada, recorrendo a analogias e metáforas, e exigindo assim um maior uso da razão. Motivo pelo qual se tornariam menos acessíveis e populares, para as massas.
A verdade é que a selecção da ‘Verdade’ (a ter que ser feita alguma selecção, o que é obviamente discutível) se inscreve muito pouco em razões de natureza teológica ou religiosa, como seria à partida de esperar. O que coloca, por sua vez, as seguintes questões: Que legitimidade assiste ao critério de separar os ‘textos doutrinários’ dos textos ditos ‘desviantes’? Porque razão estes quatro textos passam a constituir ‘A Palavra’, e os restantes não? Porque não se tornou acessível (sem destruir nem censurar) o quadro completo de narrativas da vida de Cristo, mesmo que podendo afirmar-se – subjectivamente - que havia umas mais ‘verdadeiras’ que outras? Se o valor histórico e documental dos textos é sensivelmente o mesmo, porque razão uns são credíveis e os outros não?
As tentativas de exclusão dos textos gnósticos do baú da palavra divina, no discurso mais ortodoxo da Igreja Católica, passa muitas vezes pela sua classificação enquanto emanações das 'seitas’, com o evidente sentido pejorativo que a palavra encerra (apesar da correcção conceptual do seu uso). Com efeito, ‘seita’ vem do Latim secta, que significa ‘linha de conduta, princípios, maneira de viver’. Segundo o dicionário, traduz uma ‘opinião, que se destaca de um corpo de doutrina (sublinhados meus) e que é seguida por muitos; facção; comunidade herética’. Ou seja, seita é uma opinião, uma facção, que se desvia da doutrina, tornando-se por isso herética. O que, em contexto religioso, não pode significar senão desvio da Verdade. E qual a razão para tal, se não foram sequer fundamentos teológicos e religiosos a presidir à selecção dos quatro Evangelhos?
Este modo de catalogar as ‘narrativas desviantes’ da vida de Cristo procura ignorar que o movimento gnóstico tem nas suas raízes a frase bíblica relativa ao facto de ‘Deus ter criado o homem à sua imagem e semelhança’, daí advindo a convicção de que cada ser humano teria dentro de si uma ‘centelha divina’. Centelha divina que é, justamente, a ‘razão’, a capacidade de pensar e conhecer (gnose). Ou seja, segundo os gnósticos todos os seres humanos têm capacidade para conhecer, para interpretar, para fazer uso da razão. Pelo que, objectivamente, o acesso à verdade é neste sentido tão legítimo como o é o caminho da fé e da doutrinação para os ‘não gnósticos’.
O problema da fé, nos moldes em que a Igreja Católica a entende, é justamente o da impossibilidade declarada de se fazer acompanhar pela razão, constituíndo o dogma a expressão máxima desta incompatibilidade e a rejeição das correntes gnósticas uma consequência desta recusa da Igreja em que se faça uso da razão no universo religioso. E é também por esta incompatibilidade, e por esta recusa da razão, que a Igreja Católica tem tendência para lidar mal com a liberdade humana, com o livre pensamento, com a subjectividade e com a consciência individual.
Leva e levará tempo, imenso tempo, até que se aceite que a verdade é uma procura e não um dogma, um processo e não um apriorismo. Como se levou demasiado tempo até que a Pena de Morte, por exemplo, fosse claramente condenada pela mais elevada hierarquia católica. Ou como levará ainda muito tempo, tanto maior quantos os retrocessos que puderem entretanto surgir, para que se termine com a injustificável e medieval indigência de impedir o acesso das mulheres ao sacerdócio.