a paixão pela culpa
Tive uma educação católica, apostólica e pouco romântica. Em termos religiosos foi-me dada uma mundividência povoada pela separação cristalina entre o bem e o mal, radicada no pecado, no Deus que tudo observa, julga e penitencia, na redenção obtida pelo sacrifício e pela oração.
Uma mundividência que tem subliminarmente como espinha dorsal o sentimento de culpa, a partir do qual se estrutura toda a doutrina e se perfilam os fiéis, sob o piedoso manto da caridade, do amor ao próximo como a ti mesmo, da abnegação e das bem-aventuranças.
Lembro-me de uma quaresma perdida algures no tempo.
Decorria a semana santa, e eram projectados numa tela colocada no altar principal, nos finais de tarde, episódios de uma série sobre a vida de cristo, que culminava com a paixão e ressurreição. Os momentos mais impressivos eram, naturalmente, aqueles que retratavam a via sacra, a flagelação e a cruxificação.
Conhecendo bem o argumento, lembro-me de sentir uma angústia crescente à medida que se aproximavam os episódios mais violentos, acompanhada do desejo de que estes passassem e dessem lugar aquela paz que a páscoa instala, como se de um ansiado pós-guerra se tratasse. Recordo os soluços que se ouviam durante a exibição dos mistérios dolorosos, e que vinham sobretudo da parte de trás da igreja envolta na escuridão, dos lugares que as mulheres ocupam, algumas delas vestidas com xailes negros e a dedilhar terços durante a projecção.
No rosto dos mais novos espelhava-se um misto de angústia e medo silencioso, que dava lugar a um crescente sentimento de culpa. Sim, era-nos explicita e implicitamente incutido que também nós tínhamos culpas naquele cartório. Que aquele nazareno flagelado e crucificado tinha morrido por nossa culpa, para nos salvar, ainda que não lhe tivéssemos pedido fosse o que fosse. E era assim inevitável não sentirmos em cada flagelo, em cada espinho e em cada prego o gesto cruel da mão dos nossos pecados.
Era a minha culpa que aquele homem também carregava, a culpa dos pecados que já tinha cometido e de todos os pecados que ainda iria cometer. A minha culpa, a nossa culpa, a culpa deles, a culpa de todos, mortos, vivos, nascidos e vindouros. Lembro-me, aliás, de pensar que assim sendo as coisas talvez até pudéssemos pecar livremente, porque afinal de contas estava tudo pago por adiantado. Demorei a perceber que a igreja necessita da culpa para formatar o seu sentido do mundo como o diabo de almas para encher os infernos. Levei tempo a perceber que um deus que reconhecesse como tal, a existir, não era aquele. Precisei de tempo, e literalmente de distância, para me dar conta do patético e absurdo que há em pensar num deus que sacia a sua vontade de justiça com o sofrimento, pago pela humanidade e pelo filho, na impossibilidade de esta o fazer. Percebi que o deus de que me falavam era basicamente um merceeiro sádico, incapaz de perdoar sem castigo, incapaz de compreender e aceitar as fragilidades da natureza humana sem a compensação e o deleite da satisfação que supostamente lhe proporcionaria o sofrimento físico e espiritual das almas.
Um deus assim, que gostava do sofrimento, foi-se tornando cada vez mais estranho, ausente, inconcebível e absurdo. E não estou a falar do deus do velho testamento, porque é esta a leitura e a doutrina que ainda hoje nos apresentam para a paixão e a ressurreição de cristo. É a isto que chamam a remissão dos pecados, é disto que se trata quando se fala em redenção.
A história de cristo enquanto história de um homem que nos legou um código ético intemporal, não importa o que pensemos sobre ele ou a dimensão religiosa que o envolve, tornou-se a pouco e pouco a interpretação que me pareceu mais razoável para o entender na história do mundo e dos homens. Face ao contexto histórico, cultural e religioso, é a dimensão subversiva do seu discurso e da sua prática, e sobretudo o modo como afrontou leis e instituições, éticas e mundividências religiosas e políticas que constitui a explicação da sua condenação à morte, sem que seja sequer necessário recorrer a desígnios divinos insondáveis. Aliás, a insondabilidade dos desígnios divinos sempre me pareceu desculpa para a ausência de sentido das coisas. Cristo morreu condenado na cruz, tal como tantos do seu e de outros tempos, na mesma violência e crueldade, vítima dos mesmos sistemas de leis e punições que imolaram tantos outros.
O cristo da 'Paixão' de mel gibson recupera e cristaliza, de uma forma que impressiona - como talvez nenhum outro filme o tenha feito -, o deus da culpa e do sofrimento. E é, nesse sentido, um registo fanático e obsessivo, e um desinteressante retrocesso face, por exemplo, a exercícios como o de Scorcese, da Última Tentação. Do ponto de vista da narrativa evangélica é um documento paradoxal, pois sob a aparência de uma intenção esforçada de objectividade fidelíssima aos textos, esconde uma subjectividade da intenção pastoral de Gibson, que evangeliza a partir do exacerbar do sofrimento como instigação do sentimento de culpa.
Por um lado, divide inequivocamente os personagens entre os genuinamente maus e os intrinsecamente bons (é difícil, por exemplo, imaginar aqueles soldados romanos como pessoas que têm família, filhos, uma réstea de afecto por qualquer coisa que seja). Por outro, reduz a complexidade da paixão de cristo a uma carnificina levada aos limites possíveis da crueldade, em livre exercício de imaginação delirante, sedenta de acrescentar sempre mais horror e transmitir, até à exaustão das possibilidades, a percepção da dor, mesmo que ao arrepio dos textos evangélicos.
Repugnado, resisti contudo às várias tentações de abandonar o filme a meio. E saí no final com aquela sensação de 'cordas no estômago' que conheço bem de quaresmas passadas. Mas desta vez não era a angústia inocente nem a culpabilização induzida que me invadiam. Era sobretudo uma espécie de revolta com uma obra que professa e incentiva os tempos que correm, pelo fanatismo clarividente, pela ânsia de dividir entre bons e maus, convertidos e infiéis, iluminados e bestas satânicas. Pela descrença na humanidade, pelo regresso do deus implacável que pede ajustes de contas e castiga, pela recuperação do dogma da culpa.
A culpa, que é a raiz maior do obscurantismo e que concede apenas aos dela purificados, aos que não são por múltiplas razões infiéis ou tresmalhados, a piedosa dimensão de humanidade que os habilita a tanto julgar, gratuita e sobranceiramente, os outros. Repugnância por perceber a intencionalidade da 'Paixão' de Mel Gibson: instigar um profundo sentimento de culpa como forma de evangelização, sentimento que se inscreve nas correntes ainda dominantes das concepções de Deus, do mundo e de humanidade que a igreja católica ciosamente conserva.
Uma mundividência que tem subliminarmente como espinha dorsal o sentimento de culpa, a partir do qual se estrutura toda a doutrina e se perfilam os fiéis, sob o piedoso manto da caridade, do amor ao próximo como a ti mesmo, da abnegação e das bem-aventuranças.
Lembro-me de uma quaresma perdida algures no tempo.
Decorria a semana santa, e eram projectados numa tela colocada no altar principal, nos finais de tarde, episódios de uma série sobre a vida de cristo, que culminava com a paixão e ressurreição. Os momentos mais impressivos eram, naturalmente, aqueles que retratavam a via sacra, a flagelação e a cruxificação.
Conhecendo bem o argumento, lembro-me de sentir uma angústia crescente à medida que se aproximavam os episódios mais violentos, acompanhada do desejo de que estes passassem e dessem lugar aquela paz que a páscoa instala, como se de um ansiado pós-guerra se tratasse. Recordo os soluços que se ouviam durante a exibição dos mistérios dolorosos, e que vinham sobretudo da parte de trás da igreja envolta na escuridão, dos lugares que as mulheres ocupam, algumas delas vestidas com xailes negros e a dedilhar terços durante a projecção.
No rosto dos mais novos espelhava-se um misto de angústia e medo silencioso, que dava lugar a um crescente sentimento de culpa. Sim, era-nos explicita e implicitamente incutido que também nós tínhamos culpas naquele cartório. Que aquele nazareno flagelado e crucificado tinha morrido por nossa culpa, para nos salvar, ainda que não lhe tivéssemos pedido fosse o que fosse. E era assim inevitável não sentirmos em cada flagelo, em cada espinho e em cada prego o gesto cruel da mão dos nossos pecados.
Era a minha culpa que aquele homem também carregava, a culpa dos pecados que já tinha cometido e de todos os pecados que ainda iria cometer. A minha culpa, a nossa culpa, a culpa deles, a culpa de todos, mortos, vivos, nascidos e vindouros. Lembro-me, aliás, de pensar que assim sendo as coisas talvez até pudéssemos pecar livremente, porque afinal de contas estava tudo pago por adiantado. Demorei a perceber que a igreja necessita da culpa para formatar o seu sentido do mundo como o diabo de almas para encher os infernos. Levei tempo a perceber que um deus que reconhecesse como tal, a existir, não era aquele. Precisei de tempo, e literalmente de distância, para me dar conta do patético e absurdo que há em pensar num deus que sacia a sua vontade de justiça com o sofrimento, pago pela humanidade e pelo filho, na impossibilidade de esta o fazer. Percebi que o deus de que me falavam era basicamente um merceeiro sádico, incapaz de perdoar sem castigo, incapaz de compreender e aceitar as fragilidades da natureza humana sem a compensação e o deleite da satisfação que supostamente lhe proporcionaria o sofrimento físico e espiritual das almas.
Um deus assim, que gostava do sofrimento, foi-se tornando cada vez mais estranho, ausente, inconcebível e absurdo. E não estou a falar do deus do velho testamento, porque é esta a leitura e a doutrina que ainda hoje nos apresentam para a paixão e a ressurreição de cristo. É a isto que chamam a remissão dos pecados, é disto que se trata quando se fala em redenção.
A história de cristo enquanto história de um homem que nos legou um código ético intemporal, não importa o que pensemos sobre ele ou a dimensão religiosa que o envolve, tornou-se a pouco e pouco a interpretação que me pareceu mais razoável para o entender na história do mundo e dos homens. Face ao contexto histórico, cultural e religioso, é a dimensão subversiva do seu discurso e da sua prática, e sobretudo o modo como afrontou leis e instituições, éticas e mundividências religiosas e políticas que constitui a explicação da sua condenação à morte, sem que seja sequer necessário recorrer a desígnios divinos insondáveis. Aliás, a insondabilidade dos desígnios divinos sempre me pareceu desculpa para a ausência de sentido das coisas. Cristo morreu condenado na cruz, tal como tantos do seu e de outros tempos, na mesma violência e crueldade, vítima dos mesmos sistemas de leis e punições que imolaram tantos outros.
O cristo da 'Paixão' de mel gibson recupera e cristaliza, de uma forma que impressiona - como talvez nenhum outro filme o tenha feito -, o deus da culpa e do sofrimento. E é, nesse sentido, um registo fanático e obsessivo, e um desinteressante retrocesso face, por exemplo, a exercícios como o de Scorcese, da Última Tentação. Do ponto de vista da narrativa evangélica é um documento paradoxal, pois sob a aparência de uma intenção esforçada de objectividade fidelíssima aos textos, esconde uma subjectividade da intenção pastoral de Gibson, que evangeliza a partir do exacerbar do sofrimento como instigação do sentimento de culpa.
Por um lado, divide inequivocamente os personagens entre os genuinamente maus e os intrinsecamente bons (é difícil, por exemplo, imaginar aqueles soldados romanos como pessoas que têm família, filhos, uma réstea de afecto por qualquer coisa que seja). Por outro, reduz a complexidade da paixão de cristo a uma carnificina levada aos limites possíveis da crueldade, em livre exercício de imaginação delirante, sedenta de acrescentar sempre mais horror e transmitir, até à exaustão das possibilidades, a percepção da dor, mesmo que ao arrepio dos textos evangélicos.
Repugnado, resisti contudo às várias tentações de abandonar o filme a meio. E saí no final com aquela sensação de 'cordas no estômago' que conheço bem de quaresmas passadas. Mas desta vez não era a angústia inocente nem a culpabilização induzida que me invadiam. Era sobretudo uma espécie de revolta com uma obra que professa e incentiva os tempos que correm, pelo fanatismo clarividente, pela ânsia de dividir entre bons e maus, convertidos e infiéis, iluminados e bestas satânicas. Pela descrença na humanidade, pelo regresso do deus implacável que pede ajustes de contas e castiga, pela recuperação do dogma da culpa.
A culpa, que é a raiz maior do obscurantismo e que concede apenas aos dela purificados, aos que não são por múltiplas razões infiéis ou tresmalhados, a piedosa dimensão de humanidade que os habilita a tanto julgar, gratuita e sobranceiramente, os outros. Repugnância por perceber a intencionalidade da 'Paixão' de Mel Gibson: instigar um profundo sentimento de culpa como forma de evangelização, sentimento que se inscreve nas correntes ainda dominantes das concepções de Deus, do mundo e de humanidade que a igreja católica ciosamente conserva.