e mais um dia que não nasce
"A propósito de uma exposição como aquela a que agora me sujeito senti a precisão deste outro suporte para vos dizer três coisas e vos fazer um apelo. A primeira é que uma exposição é um momento que, por si só, nada é. Exactamente da mesma forma que a exposição, enquanto momento da técnica fotográfica, nada é. Apesar de ser o momento mágico em que tudo se passa. Com as características que se passa. Mas sem o aparelho fotografico, que aqui é o vosso corpo, sem o filme, que é a memória em que a realidade se projecta - com mais ou menos sensibilidade, com mais ou menos grão - uma exposição não é nada. E penso que sem a revelação e a fixação do vosso raciocínio esta exposição, como todas as outras, continuará a ser o que era. Nada. Poderá ser alguma coisa apenas quando ligardes o vosso ampliador, colocardes o papel, introduzirdes um negativo vosso e, assim, crieis o que quer que seja. A segunda coisa que vos quero dizer é que Afife é tão longe de Coimbra como quaisquer outros dois pontos do universo. Não são o mesmo ponto, e é tudo. Mas podem ser o mesmo ponto e é tudo novamente. Apesar de em Coimbra não haver uma serra tão bonita como a de Santa Luzia, em Afife há um cemitério. Com o que nós sabemos à porta. Mas sem a panorâmica revigorante do da Conchada. Não se pode ter tudo, nesta vida. Nasce-se e morre-se. Não há tempo a perder. Sobretudo porque na morte não só não se pode ter tudo, como na vida, como não se pode ser nada. A terceira era uma passagem de Gorki. Com as alterações resultantes das dezenas de vezes que a contei sem a reler, é apenas uma história que me dá muito jeito. Euzel é um órfão adoptado por uma aldeia. Todas as famílias da aldeia cuidaram dele rotativamente, até à idade adulta. A aldeia era igual a todas as aldeias. As famílias iguais a todos os grupos. Inveja, ódio, vingança, violência. O órfão cresceu sem pertencer a nenhum deles. Pertencia à aldeia. A aldeia tinha um conselho de anciãos. Quando adulto, as opiniões dele eram ouvidas pelos membros do conselho. Isenção. Era o que lhe apreciavam. Um dia a aldeia ardeu. E enquanto ardeu, todos se aplicaram por igual e em conjunto na tentativa frustrada de salvar a aldeia. Com o cenário desolador da aldeia destruída como pano de fundo, o conselho reuniu-se para decidir que rumo se havia de dar à aldeia. O órfão não disse nada. Quando lhe perguntaram o que pensava ele de tudo aquilo, respondeu: "... era preciso que estivesse sempre a arder...". O apelo que vos faço é o de colocarem o vós mesmos a hipótese de, entre um dia que nasce fumegante e uma morte que se lembra com o fogo, esta aldeia poder estar sempre a arder. Basta querer."
(Luís Paulo Sousa, "Quatro mortes e mais um dia que não nasce", 1997)
(Luís Paulo Sousa, "Quatro mortes e mais um dia que não nasce", 1997)
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