quinta-feira, setembro 18, 2003

chiado

O seu olhar era tão brilhante quanto triste, sem que lhe faltasse contudo a serenidade abundante que sempre lhe encontrei. Era apenas uma serenidade mais ténue, como ténue era também o assomo de água em redor dos olhos. Mas a alma respirava em silêncio a melancolia daquele tempo. As palavras chegavam até mim através de uma voz embargada e eram o que me ficava mais perto, o que me era mais destinado. O olhar perdia-se vagamente na direcção das janelas do andar superior do prédio em frente, do outro lado do largo, num dos edifícios que ficam mais dourados nos finais de tarde. Aquele lugar não era apenas mais um lugar, como qualquer outro. Carregava naquele momento muito mais do que a sua materialidade própria. Era feito de memórias, como o são todos aqueles de que nos apropriamos em momentos singulares. E sendo memória era tempo. Tempo passado e sem horizonte de futuro, pelo menos quando visto a partir daquele exacto momento. Não eram necessárias palavras. Ambos sabiam e sentiam que o outro sabia e conhecia bem a densidade que compassava o fim da tarde. Mais silencioso ainda, mas igualmente presente, ali estava como companheiro um Pessoa que apenas na aparência era, naquele instante, de bronze.