quarta-feira, dezembro 13, 2006

em nome da consciência (III)

Algo mudou desde o referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez realizado em 1998. Da parte de alguns sectores mais conservadores (inclusive no seio da própria Igreja Católica), existem hoje posições menos dogmáticas e que revelam apesar de tudo maior sensibilidade ao drama humano de cada mulher que se confronta com a decisão de abortar. É verdade também, todavia, que continuam no terreno os terroristas do costume, que se socorrem sem qualquer pudor nem reserva mínima de decência, de todos os meios para intimidar, pressionar e ameaçar aqueles que possam equacionar a possibilidade de votar “Sim” no próximo dia 11 de Fevereiro. Mas como não acompanho nem uns nem outros, apenas lamento no primeiro caso o agravamento inconsequente das contradições e da hipocrisia e, no segundo caso, a opção reincidente pelo fanatismo e pela barbárie.
Já no que concerne a movimentos que apoiam a despenalização da IGV, nos termos propostos a referendo, fico perplexo quando constato que pouco se tenha evoluído em alguns casos, quer no plano da argumentação utilizada, quer no plano das estratégias de campanha concebidas, e que (bem vistas as coisas) não se diferenciam assim tanto, na sua essência, do mau gosto e do fanatismo simplista a que recorrem os terroristas do “Não”. O que revela, a meu ver, que persiste não só nestes casos uma profunda incompreensão sobre o que está realmente em causa, mas também uma surpreendente incapacidade para entender as verdadeiras razões que movem muitos dos que se encontram do lado do “Não”.

Nos argumentos de fundo, seria óptimo por exemplo que o debate que se vai realizar até Fevereiro dispensasse aquela discussão etérea (e inútil para o efeito) sobre o momento que marca o início da vida. Aceite-se como ponto de partida, de uma vez por todas, que o embrião consubstancia uma vida humana em potência, e que dará origem a um ser humano autónomo, caso a gravidez prossiga sem problemas de maior. A resistência de alguns dos movimentos do “Sim” em aceitar que se coloquem as coisas desde logo nestes termos (porventura apenas com o receio que tal “cedência” possa favorecer o argumento do homicídio) constitui a meu ver uma fraqueza e não uma força, pois impede que se abra a discussão sobre o que está verdadeiramente em causa: deverá uma mulher, até às dez semanas, ser legalmente “obrigada” a assumir-se enquanto mãe, prosseguindo uma gravidez que não deseja e da qual é parte intrínseca?
A questão reside por conseguinte em reconhecer e aceitar que à mulher cabe, nos termos propostos a referendo, a avaliação e decisão livre sobre o seu desejo, vontade, capacidade e condições para ser mãe, em nome da própria dignidade e do sentido da vida. Mais do que “o direito ao próprio corpo” (com as inenarráveis derivações para o “aqui mando eu” ou “a barriga é minha”), o que está em causa é a reivindicação de um efectivo direito à consciência individual e de uma compreensão e respeito colectivo pela liberdade de decisão, sem que penda sobre as mulheres o anátema do crime ou a ameaça do castigo penal.

Por isso, se queremos efectivamente discutir de forma séria com todos os que se encontrem indecisos relativamente ao seu sentido de voto, ou mesmo com muitos dos militantes do “Não”, devemos antes de mais dar conta de que o que os move é algo bem mais profundo do que um suposto deleite com a humilhação e a condenação das mulheres, a sede de vingança, ou a tentativa de usurpação de ventres alheios, como por vezes se pode deduzir no modo como alguns partidários do “Sim” arremessam os seus argumentos em direcção ao lado contrário. O que move e pode mover parte do eleitorado a votar “Não” assenta num raciocínio relativamente simples e compreensível, baseado nas seguintes convicções: 1. O embrião consubstancia a existência de uma nova vida humana; 2. Cometer aborto corresponde por essa razão à prática de homicídio; 3. Tratando-se de homicídio (com a agravante de o mesmo atingir uma vida indefesa), este deve ser legalmente intolerado e punido.
Perceber isto permite compreender que na essência destas convicções se encontra um princípio de defesa da vida humana que, em substância, não difere das razões que levam milhões de pessoas em todo o mundo a opor-se à vigência da pena de morte (numa luta que não será certamente menosprezada por estes defensores do “Sim”). A questão é que não estamos, nos termos propostos a referendo, perante um “ser outro” autónomo, mas sim perante uma realidade e um momento em que o ser humano a que dará origem o embrião depende, inextrincavelmente, de uma relação profunda estabelecida desde o início com a própria mãe (e que se prolongará pelo menos até ao fim da gravidez), razão pela qual esta não pode ser expeditamente rasurada do processo, como se afinal nem estivesse lá para que este prossiga, ou como se o feto não fosse “algo” que lhe diga directa e intimamente respeito.

É por estas razões que me parecem absurdos e absolutamente inconscientes e descentrados alguns dos slogans utilizados por defensores do “Sim”, e que me causam uma enorme perplexidade, pelo facto de não conseguir perceber como se pode considerar aceitável fazer campanha nestes termos, sobretudo – e devo ser franco - por parte de pessoas que admiro pelo seu empenho cívico em causas da maior nobreza e coragem.
Dou o exemplo desta campanha, para questionar o que realmente se pretende com o recurso a artefactos e indumentárias onde se inscreve um “Porque sim” (em cujas entrelinhas não consigo deixar de ler a ligeireza de um “Porque me apetece”), ou o já referido “Aqui mando eu” (que me faz pensar que um argumento deste género pode também ser utilizado por um lusitano macho latino que reivindica o direito a espancar a mulher em espaço doméstico…). E isto para já não falar da insólita e deplorável vertente mercantil e de merchandise associada a esta iniciativa em concreto.

Cair na tentação de transformar o referendo numa espécie de contenda simplista que separa o “eixo do bem” de um suposto “eixo do mal”, e que tende a demonizar todos os que não estão a favor do “Sim”, para além de convocar más memórias constitui um péssimo serviço que estes defensores da despenalização da IVG prestam à discussão, tornando não só contraproducentes e sem destinatário útil os argumentos utilizados, mas favorecendo igualmente um enclausuramento autista do próprio movimento, como aqui muito bem se assinalou.