segunda-feira, novembro 05, 2007

educação e igualdade de oportunidades (II)

Para além das questões que a proposta de instituição do "cheque-ensino" coloca, como as que se assinalam aqui, deve sublinhar-se uma das suas consequências mais profundas, assente na erosão de um princípio basilar do ensino público: a lógica de proximidade.
Com ele, é igualmente a ideia de "escola democrática" que sofre um retrocesso, na medida em que deixam de estar criadas condições que favorecem a frequência de um estabelecimento de ensino por parte de alunos com proveniência social distinta.
Instituído o "cheque-ensino", as escolas deixam de recrutar os alunos numa lógica de cobertura territorial, passando a fazê-lo de acordo com uma lógica de procura (tal como sucede já hoje na cooptação de estudantes pelas escolas e colégios privados, alheia a critérios de natureza territorial). É verdade que os alunos passam a dispor da capacidade de escolher a escola que desejam frequentar. Mas o problema é que essa capacidade de escolha não é igual para todos, essencialmente por duas razões.
Do lado da procura, alunos com maior facilidade em organizar a sua mobilidade casa-escola passam a poder escolher num leque muito mais amplo de escolas. Esta amplitude é significativa no caso extremo de alunos que dipõem de motorista particular, menor em função da capacidade de conciliação da escola com os horários dos pais (em regra mais rígidos no caso de trabalho por conta de outrem), e muito limitada no caso de alunos cujos meios de deslocação dependem da frequência e horários do transporte público.
Do lado da oferta, os estabelecimentos de ensino passam a escolher os alunos em função dos seus proveitos escolares, promovendo um recrutamento que garanta a obtenção de bons resultados pela escola (ambição hoje mais acentuada, graças à pressão que os rankings vieram instituir). Os estabelecimentos de ensino mais procurados seleccionam os melhores alunos e dão, desse modo, corpo a um sistema que legitima e reforça a segregação social, arrumando tendencialmente alunos-tipo por escolas-tipo. E as diferenças nos rankings, mesmo que continue a ser diária a luta de tantas escolas e de tantos profissionais da educação, tendem a acentuar-se (mesmo que se mantenham os métodos pedagógicos, os quadros de docência ou as formas de apoio desenvolvidas por cada escola). Face ao estreitamento da oferta para alunos com piores resultados, a escola mais próxima poderá deixar de lhes estar tão acessível como até aqui, implicando um esforço acrescido nas logísticas de deslocação e de conciliação de horários, com impactos inevitáveis ao nível da motivação e do aproveitamento escolar.
Mas a consequência mais grave consiste de facto na uniformização social das escolas, superior à que já hoje se verifica, diminuindo a possibilidade de encontro entre alunos de proveniência social distinta, crucial para a troca de experiências e aprendizagens, para a partilha de vidas e horizontes, num processo de claro empobrecimento social, que aliás é mútuo.
A liberdade de escolha que se esconde por detrás da proposta do "cheque-ensino", não é só a transposição da lógica dos condomínios fechados e dos guetos para o sistema educativo. É também uma fonte inesgotável de desconhecimento social. Um caminho promissor para uma sociedade mais egoísta, fechada, ignorante de si mesma e desigual, e onde claramente se reduz a margem para promover a igualdade de oportunidades e os mecanismos de ascensão social.