sexta-feira, setembro 12, 2008

árgia (II)

"Sabes que aqui por baixo há mortos - disse o Miguel, pulando sobre as velhas tábuas da capela. Isto foi há dois verões. O Miguel tinha cinco anos. Pular em cima dos mortos era o máximo, como este Verão o máximo é andar de bicicleta. Num lugar assim, os mortos são como os cães de família. As crianças sempre os conheceram, não têm medo. O medo é uma forma do que desconhecemos. Eu já não me lembrava que tinha medo no Convento, mas este Verão lembrei-me logo que anoiteceu e as cagarras começaram a guinchar, às cegas.
De dia o medo não se vê, porque os dias são verdes e azuis com rochas negras e uma espuma de sal, hortênsias, criptomérias, pavões, galinholas e estrelas-do-mar de um vermelho como as mulheres usam na Índia. (...) Às nove da noite ainda é possível ler ao ar livre. Depois o bosque desaparece num emaranhado de sons animais. E o jardim fica negro até não se distinguir o mar.
É então que dentro do convento as portas rangem. A adega está cheia de sombras. Uma fechadura chia. Ouvem-se lamentos, um roçar de asas, latidos. (...) As celas estão abertas, uma a uma, ao longo dos corredores. Camas de dossel, cómodas com virgens e cruzes, nichos e portadas que de vez em quando batem com o vento, revelando um rasgão negro na parede, que é o mar. (...) No século XVI, por aqui se acoitaram raparigas teimosas, fugidas de casa de seus pais, recusando casamento. (...) Homens que deixavam para trás algum crime, alguma dor, e caminhavam descalços desde as furnas, desde a povoação. (...) E um dia, depois da terra tremer, cobrindo tudo de fogo, cinza e lava, a estas irmãs sucederam irmãos, que foram erguendo o Convento. (...) Foi sobre estas almas que o Miguel pulou, sem medo. Honra aos mortos. É assim que a história continua."

(Do artigo de Alexandra Lucas Coelho, no Ípsilon de hoje)