segunda-feira, abril 26, 2010

cinzas

"É possível a primavera quando não há aviões no céu. Um vulcão bate as asas na Islândia e o futuro como probabilidade fica suspenso. Então os homens, as mulheres e as crianças amontoam-se como numa fila para o pão, varados pelo mesmo frio perpendicular, esperando que nossa senhora dos transportes terrestres interceda por si e pelos seus. Há a rapariga que cheira a um bom Patchouli e a espanhola histérica que exige compensações. Há gente a rezar ao seu próprio deus e outros que descobrem o valor da má poesia. Cada um sente à sua maneira o tempo a mostrar-se para além das horas. Por mim recusarei ambulâncias e outras formas bruscas de regressar à realidade. No meio da cidade há umas árvores brancas, quase transparentes. Até amanhã ficarei à espera que sobre elas caiam finalmente as cinzas."

(Miguel Cardina, no Vias de Facto)

domingo, abril 25, 2010

grândola

Ouvi esta versão pela primeira vez numa noite de Junho, na Fábrica do Braço de Prata (onde nesse dia também esteve o Slavoj Žižek, mas isso agora não interessa). Mais tarde no Castelo de São Jorge, também no Verão. Nas duas noites, um vento quente levava e trazia os pianos. A melodia irrompe com a força primaveril de uma cascata, removendo o mais leve indício de poeira que pudesse distanciar o passado do presente. Mas faz-se acompanhar por um fundo compassado e grave, por vezes em contratempo, que carrega a atmosfera com uma densidade fúnebre. A interpretação de "grândola, vila morena", de Mário Laginha e Bernardo Sassetti, impressiona pela forma como, intencionalmente, oscila entre o renascer e a elegia.

sábado, abril 24, 2010

da tortura

"Quis lutar com as armas que tinha, e lutar ainda depois de ter sabido, pela derrota do meu corpo e pela perda da minha lucidez que a força era pouca, fraca e frágil, e que a resistência só poderia ser vitoriosa se tivesse sido maior, mais intenso, integral o meu empenho no projecto revolucionário, integral a preparação técnica, física e ideológica, integralmente comunista o corpo, como pretendia tornar-se a inteligência."

Auto-crítica de um preso político, submetido a tortura pela PIDE/DGS, que lamenta de uma forma pungente a sua incapacidade para resistir à dor (in Miguel Cardina, Política, punição e silenciamento nas oposições radicais ao Estado Novo, a publicar brevemente aqui).

sexta-feira, abril 23, 2010

há lodo no cais

"No mesmo momento em que o Parlamento, cheio de frases bondosas e pias intenções, aprovava um pacote anticorrupção, o Tribunal da Relação de Lisboa anunciava a absolvição de Domingos Névoa.
Para que não haja confusão: o tribunal deu como provados todos os factos essenciais. Dá-se o pormenor dos juízes considerarem que um empresário tentar pagar a alguém com responsabilidades políticas para que este mude publicamente de posição sobre um negócio em que está envolvido não consiste um acto de corrupção. Apenas porque não há, na consequência desse pagamento, nenhum acto administrativo da competência do político.
O que o tribunal disse a todos os corruptores (e a todos os portugueses) é que é legal comprar posições públicas dos decisores que nós elegemos. Que a nossa democracia está à venda, disponível para os caprichos dos domingos névoas desta Pátria. (...) O que o tribunal disse a todos os que sejam abordados por um corruptor (e a todos os portugueses) é que a luta contra a corrupção não é um dever de cidadania. É uma carga de trabalhos sem qualquer consequência. Mesmo que todas as provas estejam lá."

(Daniel Oliveira, no Arrastão)

quarta-feira, abril 21, 2010

economia (e política) do medo

"Não há moeda única segura sem orçamento federal redistributivo com peso, sem dívida pública europeia (euro-obrigações), sem convergência na fiscalidade e na regulação robusta do sector financeiro e com um BCE que pode ajudar os bancos, mas não pode ajudar os Estados que tiveram de segurar as economias no contexto de uma crise financeira global causada pelos bancos (estatutos…). Não há moeda única segura enquanto o financiamento dos Estados em crise depender dos humores dos mercados financeiros liberalizados, do turbilhão da especulação ou de linhas de crédito público a taxas de juro elevadas e com condições de ajustamento geradoras de depressão (isto é pior do que os desastrosos planos do FMI dos anos oitenta e noventa porque nem sequer existe a hipótese da desvalorização cambial). Não há moeda única segura enquanto coexistirem excedentes e défices exagerados nas relações comerciais como resultado da aposta da burguesia alemã na competitividade obtida por via da compressão salarial. Na Alemanha, onde os salários já são elevados e onde existe um Estado Social robusto, esta estratégia de promoção das exportações à custa dos défices das periferias é mais fácil de aceitar pelos trabalhadores (a ameaça de deslocalização empresarial para leste também ajuda à “persuasão”: sempre a economia do medo), mas, mesmo na Alemanha, esta estratégia não tem gerado grandes resultados em termos de crescimento."

(Do post de João Rodrigues no Ladrões de Bicicletas)

terça-feira, abril 20, 2010

cidades com estátuas (XXIII)

Jardin des Tuileries (Paris, Abril 2010)

segunda-feira, abril 19, 2010

mexia: valor cambial

"Face ao chumbo do aumento extraordinário das bolsas de investigação [cujos valores se mantém inalterados desde 2002], umas contas de merceeiro: 1) 10% de aumento das bolsas de 745 euros = 74,5 euros/mês = 894 euros/ano; 2) 5% de aumento das bolsas de 980 euros = 49 euros/mês = 588 euros/ano. O magro bónus do Mexia (3,1 milhões de euros) daria para aumentar 3468 bolsas do primeiro tipo ou 5272 do segundo. Peanuts."

(Hugo Dias, no Minoria Relativa).

domingo, abril 18, 2010

cidades com estátuas (XXII)

Jardin des Tuileries (Paris, Abril 2010)

quinta-feira, abril 15, 2010

grande entrevista

Francisco Louçã esteve bem na entrevista de hoje a Judite de Sousa. Claríssimo nos argumentos, consistente e convicto na exposição das ideias. A discussão do PEC foi um dos momentos altos, com a desconstrução lapidar da pretensa incontornabilidade das opções feitas pelo Executivo, a par da demonstração de que essas escolhas poderiam (e deveriam, num governo de esquerda) ser outras (na sequência aliás da proposta - bem fundamentada e rigorosa - feita pelo Bloco, de um PEC alternativo).
Já o desempenho de Judite de Sousa suscitou as maiores perplexidades. No mesmo momento de discussão do PEC, por exemplo, raramente quis de facto prestar atenção aos argumentos expostos (e contra-argumentar em função deles). Manteve-se numa linha de aceitação acrítica do discurso dominante sobre os sagrados mecanismos do mercado e do situacionismo da política económica europeia, ignorando pois todo o intenso debate que está em curso. Mas o menos recomendável, em termos jornalísticos, é aquele traço latente de arrogância e desprezo com que se dirige a líderes de "pequenos" partidos (a atitude foi basicamente a mesma com Paulo Portas, há cerca de quinze dias atrás). Existem uns jogos interessantes de role-playing que alguns jornalistas talvez devessem exercitar com certa frequência.

sexta-feira, abril 02, 2010

songs for the season

The host of Seraphim (Dead Can Dance, The Serpent's Egg, 1988)

quinta-feira, abril 01, 2010

o duplo erro do pec

"O PEC revela-se cerimonioso, ou mesmo reverente, perante os grandes lucros, a começar pelos do sector financeiro, a quem não é pedido sequer uma participação relevante no esforço, quanto mais um sacrifício. (...) Quando se contraem os salários e os rendimentos dos desfavorecidos e se reduz o investimento - bases essenciais da procura -, a atenção à economia, isto é, à capacidade para estimular a criação de riqueza e de emprego dilui-se. (...) Ninguém que tenha preocupações com o risco deflacionista que paira sobre as economias fica tranquilo. É certo que se aposta nas exportações. Mas é aí que o problema da lógica económica do PEC revela a sua imensa fragilidade. Numa Europa em que todos os países parecem seguir a mesma lógica, numa solidão individual insustentável, qual o destino de tanta exportação se todos tendem a reduzir as suas respectivas capacidades de compra?"

(Do artigo de José Reis e José Maria Castro Caldas, no Público de hoje)